Trabalhos Aprovados 2018

Ficha do Proponente

Proponente

    Fernão Pessoa Ramos (UNICAMP)

Minicurrículo

    Professor Titular da UNICAMP. Foi presidente da SOCINE. Atuou como prof. convidado na Universidade Sorbonne Nouvelle em duas oportunidades. Em 2017/2018 foi professor visitante da Universidade de Chicago. Seu livro mais recente é Nova História do Cinema Brasileiro (SESC, 2018, no prelo), organizado com S. Schvarzman. Publicou A Imagem-Câmera; Mas Afinal…o que é mesmo documentário? e Cinema Marginal, A Representação em Seu Limite. Organizou, com L.F. Miranda a Enciclopédia do Cinema Brasileiro.

Ficha do Trabalho

Título

    50ANOS DE TERRAEM TRANSE:PARADOXOS DA CONSCIÊNCIA DO POPULAR EMGLAUBER

Resumo

    Paulo Martins, protagonista de Terra em Transe, traz consigo um tormento, uma grande culpa: despreza o povo, “seu sangue sem vigor”. No entanto, não dispõe lidar com o sentimento de modo passivo, purgá-lo na compaixão. A negação do povo alienado tem um fundo ambíguo, equivalente àquele que nutre a negação cristã do filho, ao Pai, na cruz. Em “Eztetyka do sonho”, 1971, Glauber lida afirmativamente com o transe místico, antes manifestação cultural reificada, agora liberto da âncora da consciência.

Resumo expandido

    Em maio de 2017 comemorou-se o cinquentenário do lançamento de Terra em Transe. Apesar dos primeiros longas do Cinema Novo serem mais intimistas, tanto a produção ligada aos CPCs da UNE, como o primeiro longa de Glauber (Barravento) e Os Fuzis de Ruy Guerra, desenvolvem um universo ficcional no qual a figura do povo surge como alteridade. Olha-se para esse ‘outro’ inicialmente com desconfiança e espanto, depois com exasperação e má-consciência e, finalmente, com deslumbramento.
    Terra em Transe corresponde a este segundo momento. Glauber nunca evoluiu para o terceiro momento, do deslumbramento, no qual desembocam alguns de seus pares e a primeira produção da Retomada na virada do século XX. Dobrou-se sobre si e sobre a alteridade popular esticando-a, pelos limites do transe, até uma representação dilacerada, marcada pela imagem da exacerbação das pulsões interiores, no limite da fala não discursiva e da representação direta das sensações. Terra em Transe é o momento em que fica claro que o compromisso com a boa consciência altruísta não seria possível. O abismo se trinca e o personagem Paulo Martins é o protagonista da ruptura.
    Paulo Martins tem um grande tormento, uma grande culpa que carrega nas costas e atravessa o filme como móvel: ele, no fundo, despreza o povo e sua passividade, sua servilidade, “seu sangue sem vigor”, como diz a determina altura. É um desprezo que surge desde a sequência no início do filme, quando conflita o líder camponês recriminando-o de ser “tão covarde, tão servil” e define o ‘outro-popular’ como “gente fraca sempre, gente fraca e com medo”. A fissura da consciência sobre o outro popular, visto como ‘alienado’, dilata-se em exasperação conforme a narrativa avança. O protagonista sente-se culpado, mas não se dispõe a lidar com esse sentimento de modo passivo, purgá-lo na compaixão. Ativamente cria, no contraditório, um clímax barroco de afetos.
    A negação do povo por Paulo Martins tem um fundo de culpa, equivalente àquela que nutre a negação cristã do filho, ao Pai, na cruz. Não conseguindo escapar do autoflagelo pela negação da cultura popular vista alienada, abre fenda para a comiseração na culpa. Da acusação de “irresponsabilidade política” à afirmação positiva da “irracionalidade” na experiência do transe, há o passo que Glauber dá, em 1971, na direção do manifesto conhecido como “Eztetyka do sonho” . Nesse texto temos o Glauber de uma fase posterior, que manda às favas as demandas de ‘responsabilidade’ que cercam a ideologia do ‘povo alienado’ e do saber da reificação, carregadas pela razão instrumental do engajamento esclarecido. Assume sem remorsos e sem culpa a potência das pulsões e o transbordamento irracional, em busca do que chama de “integração cósmica”.
    Terra em transe é momento de passagem no qual as ‘descontinuidades’ de uma arte revolucionária passam a ser debitadas “às repressões do racionalismo” . A ‘razão da burguesia sobre o povo’, como a define Glauber, é a mesma razão iluminista que fundamenta o didatismo da ‘arte popular revolucionária’ nos manifestos dos Centros Populares de Cultura. O discurso que retrata a ‘razão do povo’ toma uma nova configuração em seu manifesto “Eztetyka do sonho”. Surge sem percalços e dúvidas existenciais e com capacidade para adentrar, de modo afirmativo, o transe místico. É posição que Glauber respirará plenamente somente nos longas do exílio e em seu último filme, Idade da Terra. Em Terra em transe, os dilemas do protagonista com a ordem do discurso burguês de esquerda ainda possuem massa crítica para provocar ebulição e divagações exasperadas. As irrupções dessa ebulição são os ‘mergulhos na desordem’, tão próprios ao protagonista Paulo Martins.

Bibliografia

    Bernardet, Jean-Claude. Brasil em tempo de cinema. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967.
    Bernardet, Jean-Claude; Galvão Maria Rita. Cinema – Repercussões em Caixa de Eco Ideológica – As ideias de ‘nacional’ e ‘popular’ no pensamento cinematográfico brasileiro. São Paulo, Brasiliense, 1983.
    Derrida, Jacques. Le Théâtre da la Cruauté et la Cloture de la Représentation. IN L´Écriture et la Différence. Paris, Seuil, 1967.
    Lévinas, Emmanuel. Entre Nous – Essais sur le penser-à-l’autre. Paris, Grasset, 1991.
    Rocha, Glauber. Eztetyka do Sonho. IN Revolução do Cinema Novo. São Paulo, Cosac Naify, 2004.
    Rocha, Glauber. Cartas ao Mundo. São Paulo, Companhia das Letras, 1997.
    Rocha, Glauber. Entrevista concedida a Cárdenas, Federico de; Capriles, René. Glauber: el ‘transe’ da América Latina. Hablemos de Cine. Lima (47) 34-38, mayo-jun. 1969. IN Rocha Glauber. Revolução do Cinema Novo. São Paulo, Cosac Naify, 2004.