Cinemas mundiais entre mulheres: feminismos contemporâneos em perspectiva
Resumo
- Na compreensão de que o cinema constrói mundos possíveis, este ST surge da urgência por discutir a relação entre o cinema e a construção de mundos pelas mulheres e com as mulheres, ou seja, entre mulheres. Esse objetivo inicial nos coloca o desafio de pensar o conceito de Cinema Mundial de forma plural, no reconhecimento não apenas das heterogeneidades que o constituem, mas porque, na medida em que os feminismos também podem constituir olhares múltiplos, a relação mulheres/mundos através das imagens em movimento só pode acontecer se colocarmos todos os termos em perspectiva, ampliando os horizontes teóricos e políticos que os circundam. Interessa-nos, pois, uma aproximação entre os cinemas mundiais e os feminismos, promovendo debates que questionem as grandes narrativas de gênero, raça, classe, e sexualidade, e mobilizem olhares feministas onde a autoria das mulheres produz sentidos e significados na contramão das indústrias dominadas por poderes alinhados ao capitalismo patriarcal.
Introdução
- Os estudos da relação entre mulheres e cinema são recentes no Brasil. Embora tais estudos não sejam inéditos, pode-se dizer que somente nos últimos anos vêm surgindo iniciativas, de maneira mais sistematizada, como colóquios, cursos, disciplinas, cineclubes, redes sociais, que buscam expandir o conhecimento acerca do cinema realizado por elas, bem como o que tangencia tais questões. Nesse cenário em que a pesquisa focada na intersecção entre cinema e gênero tem gerado maior interesse na Socine e em programas de pós-graduação da área, importa investigar com mais verticalidade a natureza crítica e teórica desse investimento analítico, em uma estreita articulação com o campo já consolidado dos estudos feministas de cinema hoje.
Sem estabelecer as pontes entre os saberes e os fazeres feministas com agudeza, sem assumir a necessidade de nomear práticas e políticas decolonias e interseccionais que constituem o universo dos sujeitos mulheres do cinema, sem reconhecer que os feminismos são múltiplos, corremos o risco de ignorar a pluralidade de pontos de vista, a riqueza das experiências de vida que compõem a trajetória de resistência feminina, a potência viva que alimenta o cinema com a luta das mulheres. Na medida em que essas lutas buscam mundos possíveis, torna-se crucial pensar a noção de mundos, cheios de heterogeneidades e diferenças, e quem são os sujeitos que os habitam. Daí a importância de propor o ST em uma visão ampliada e plural dos cinemas mundiais.
Assim, a atualidade e a novidade desta proposta de ST, que visa não apenas reunir trabalhos sobre filmes dirigidos por mulheres, mas teorizar e historicizar a relação entre gênero e cinema, existe para superar uma visão universalizante da mulher e do feminismo, procurando, com isso, revigorar o debate de forma mais plural, no que tange aos pressupostos teóricos, contextos políticos e posicionalidades que permeiam essa relação. Vale ressaltar que este ST pressupõe não apenas filmes assumidamente feministas, mas perspectivas que constituam olhares feministas sobre os filmes nos diversos contextos de produção, às margens dos centros de opressão alinhados ao capitalismo patriarcal que, historicamente, têm produzido o apagamento da contribuição e da efetiva participação das mulheres na criação audiovisual. Logo, a indústria não está necessariamente fora do que tomamos como cinemas mundiais, desde que os trabalhos em torno de suas produções mobilizem olhares desafiadores de sua centralidade, deslocando-a criticamente em leituras que se disponham a organizar um pensamento em torno das questões de gênero em articulação com pertencimentos étnico-raciais, classes e sexualidades. Esse conjunto de forças precisa estar em evidência quando os poderes querem silenciar a expressão artística no país; precisa assumir os enfrentamentos do contexto político do Brasil de hoje que, sem a participação efetiva dos olhares femininos e feministas sobre o cinema, retrocede e se dilui na poeira das opressões.
Objetivo
- O objetivo central deste ST é repensar os cinemas em escala mundial sob a ótica das mulheres, a partir das resistências estéticas e políticas e das epistemologias dos feminismos, acrescentando as teorias contemporâneas ao debate iniciado com a virada feminista dos anos 70. Assim, este ST visa fomentar uma reflexão crítica e política sobre o cinema feito por e com mulheres no mundo, consolidando um espaço para o aprofundamento teórico das abordagens sobre a temática do cinema e do gênero na Socine. À luz de um pensamento feminista plural, visamos: estimular diálogos que iluminem e tensionem o campo do cinema sob a perspectiva do gênero; acolher a interdisciplinaridade dos olhares; valorizar epistemologias e metodologias renovadas; atentar para as interseccionalidades; analisar a poética e a política que atravessam os mundos construídos pelas mulheres no cinema; fomentar o debate sobre os feminismos do/no cinema, visando criar redes e ampliar a pesquisa sobre mulheres e cinema no Brasil.
Aspecto
- São quase 45 anos desde que Laura Mulvey escreveu Prazer Visual e Cinema Narrativo, inaugurando o que viria a ser a teoria feminista do cinema. Partindo de uma crítica ao cinema hollywoodiano, em função de seu auto-centramento no olhar falocêntrico, essa perspectiva foi aos poucos perdendo espaço. Primeiro, pelo fundamento téorico-epistemológico com base na psicanálise, que não apenas produziu uma ótica binária a partir de um determinismo biológico, como desconsiderou qualquer postura ativa por parte da espectadora feminina. Além disso, por aderir a uma essencialização do lugar da mulher, algo já não mais possível após a abertura interseccional que, do ponto de vista teórico, chegou ao cinema a partir principalmente dos textos das feministas negras, como Sister Outsider (1984), de Audre Lorde, mas também da própria produção cinematográfica realizada por mulheres negras e lésbicas, como De cierta manera, (1977), da cubana Sarah Gomez.
Ademais, quando as mulheres começam – a partir do contracinema feminino dos anos 70 – a empunhar as câmeras, a teoria geral do cinema de Mulvey parece obsoleta frente aos múltiplos desejos e singularidades que vão se espalhar pelas telas de cinema. Como a teoria do cinema feminista se refez de lá para cá é um caminho que ainda está sendo trilhado, em pleno processo. O que temos, num primeiro momento, são abordagens pós-estruturalistas – masculina europeia – de corte deleuziano, derridadiano, foucaultiano,. Conflitos são apaziguados, quando, no universo do discurso, a mulher é finalmente nomeada. Porém, para Teresa de Lauretis (1987), entre outras, o corpo feminino ainda estava em disputa pelas e nas imagens. Mesmo o pensamento de Michel Foucault, sua teoria da sexualidade – e das formas de resistência – nunca definiu a diferença de gênero ou raça, e é nessa fenda exposta que o retorno de novas forças políticas do feminismo começam a ser reivindicadas pelo cinema.
De um lado, era preciso entender as singularidades e as posicionalidades; de outro, a luta não poderia se pulverizar. A noção da interseccionalidade vem responder a esse impasse, e o cinema em sua relação com o feminismo evoca olhares concernentes ao gênero, mas também à classe, à raça, à sexualidade, e as formas culturais. Ser feminista no cinema é perceber a multiplicidade na construção do que é ser mulher, e buscar formas e forças poéticas e analíticas que pressuponham as várias modulações do machismo não só em suas vertentes capitalistícas mais atuais, mas no entendimento tardio das forças coloniais que marginalizaram as mulheres negras, campesinas, voltadas às ações comunitárias e aos saberes tradicionais. A teoria feminista do cinema, desde o texto disruptivo de bell hooks – “O olhar opositor: mulheres negras espectadoras” – já não podia mais se fiar a uma meta-narrativa seja ela psicanalítica, marxista ou pós-estruturalista. Enfim, com todas as suas bases estremecidas, resta às mulheres de cinema – realizadoras, atrizes, roteiristas, pesquisadoras, professoras – repensar formas de construir epistemologicamente um caminho de conhecimento e reconhecimento feminista decolonial das imagens em movimento, que em sua constante revisão, e em sua constituição entre o comum e o diferente, permita a interlocução e o dissenso que faz política entre e com mulheres.
O desafio deste ST é se juntar às forças e juntar forças para desvendar novos modos de pensar politicamente a construção, a figuração e o protagonismo das mulheres no cinema mundial, e, assim, reunir e produzir metodologias de pesquisa que se debrucem sobre as formas diegéticas e estéticas a partir das quais a mulher porta sentidos e dispara afetos no embate com as forças colonialistas, conservadoras e machistas de que o capitalismo ocidental e/ou os fundamentalismos se valem para perpetuar o patriarcado. Através do cinema mundial, busca-se olhar para as mulheres – em cena ou atrás da câmera – em suas várias situações, contextos, e posicionalidades, visando identificar quais perspectivas e cruzamentos teóricos cada filme enseja, desde as concepções mais analíticas e comparativas, dos modos de figuração e construção do feminismo cinematograficamente; seja do ponto de vista do corpo feminino em cena, seu gesto performativo/performático e suas relações com o espaço; seja através de pesquisas mais etnográficas que acompanhem tantos os processos de produção quanto o contexto cultural e socioeconômico das mulheres filmadas em suas famílias, grupos, comunidades simbólicas e de lutas, seus mundos.
Sem se fiar a uma metodologia única, o que agrega as pesquisas deste ST é o entendimento de que a abordagem plural e crítica do feminismo no cinema deve contemplar os vários cortes interseccionais e, portanto, atentar aos diferentes dispositivos que os remontam, e se o fazem de forma convencional, retomando gestos conservadores e opressivos, ou de forma insurgente, dando a ver os embates e as conquistas das mulheres em seus diferentes espaços, identidades e reivindicações.
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Coordenadores
- Alessandra Soares Brandão
Karla Holanda
Roberta Veiga