Exibição cinematográfica, espectatorialidades e artes da projeção no Brasil
Resumo
- Ampliando abordagens tradicionais que privilegiam o cinema a partir do estudo de filmes e/ou de diretores, esta proposta investe na revisão da história do cinema brasileiro sob a ótica da sala de cinema (agora, portanto, histórias de cinemas) e do mercado exibidor nacional, das práticas socioculturais dos públicos integradas à recepção cinematográfica e das distintas formas de projeção pré e pós-cinema. Aborda historiograficamente a passagem dos locais improvisados para a exibição de imagens em movimento para os espaços específicos e fixos de projeção, bem como das transformações tecnológicas destes cinemas tradicionais, além de seus modelos de programação e sua inserção, em especial mas não só, na vida urbana. Segue, ainda, a refletir sobre a relação do espectador com o filme, as espacialidades e as ambiências nos diferentes arranjos de exibição e diversos meios e linguagens das novas concepções de projeção visual e/ou audiovisual contemporânea.
Introdução
- O ST se justifica pela necessidade de refletir sobre aspectos históricos e contemporâneos do que conhecemos como exibição cinematográfica, espectatorialidades e artes da projeção através de uma arqueologia e de uma genealogia das mídias, examinando a sua intrínseca relação com as diversas práticas socioculturais e a produção de sociabilidades dos públicos, tendo também em vista fatores econômicos, políticos, urbanos, tecnológicos e da indústria do cinema que interferem nos modos pelos quais essa relação se engendra. Pensamos o cinema por meio de abordagens historiográficas acerca da longa história das práticas de projeção (lanternas mágicas, sombras chinesas etc.); dos espetáculos visuais (panoramas, cosmoramas, mareoramas, entre outros); das salas de cinema (espaços destinados à projeção e recepção de filmes); das mudanças no estatuto da espectatorialidade e das novas exigências de interatividade e agenciamento do indivíduo no quadro de uma nova cultura das telas e das tecnologias e estéticas da projeção visual e/ou audiovisual em novos cenários pós-cinema (performances de live cinema e outras poéticas de projeção em tempo real). Perscrutamos, assim, as histórias de cinemas, termo cunhado pelo pesquisador João Luiz Vieira.
Começando uma trajetória híbrida de arte e entretenimento tecnológico nos laboratórios de pesquisas, ateliês, feiras de variedades, parques, salões, galpões e teatros, o cinema consolida sua história (e histórias) nas pequenas ou médias salas, movie palaces ou poeirinhas. Sai das ruas e torna-se mais uma loja nos shoppings centers. Otimiza custos e multiplica lucros nos multiplex e megaplex. Busca alternativas em centros culturais, museus, a céu aberto, em qualquer “lugar”, alicerçado em constantes mutações tecnológicas. Um “outro cinema” emerge, se fazendo presente, por exemplo na própria fachada do que resta de um cinema. Surgem rupturas apontando que a institucionalizada situação cinema não é mais a mesma. O lugar do cinema e os filmes se reelaboram, bem como o lugar do espectador/observador/interator. O cinema extrapola a tela preenchida pelo filme. Outros mercados da exibição e novas redes para pensar a exibição, movimentos, coletivos são formados. Em tempos que salas se adequam à realidade do streaming, por exemplo, vale lembrar que o ambiente cinema muda e a análise dessas mudanças passa pelas histórias das salas e de seus elementos. Redefine-se o que, historicamente, constituiu o/a espectador/a. Em suma, o espaço físico e os fatores culturais, sociais e perceptivos que envolvem a experiência cinema vêm sofrendo significativas transformações com radical rapidez em nossa contemporaneidade. Nessas significativas transformações se inserem histórias de cinemas ao longo da grande História do Cinema. Nessas extrapolações do cinema para além dos filmes justificamos a continuidade do ST em questão.
Objetivo
- Tratar os princípios constitutivos da exibição de filmes – tela, plateia, projetor e demais equipamentos, a arquitetura, ambientes, fachadas e relação com a publicidade, a inserção dos cinemas no espaço urbano e o exercício de sociabilidades; refletir as mudanças trazidas pelo surgimento dos movie palaces e do cinema sonoro, a concorrência da televisão e o espetáculo imersivo dos formatos panorâmicos, o fenômeno do cinema de arte e de outros tipos de circuitos de exibição, o impacto do adensamento das megalópoles na extinção dos cinemas de rua, os cinemas de shopping e o advento do multiplex; Pensar os problemas inerentes ao próprio mercado exibidor nacional; observar o impacto da tecnologia e estética dos novos formatos (e artes) de projeção na contemporaneidade; refletir sobre práticas dos públicos em dinâmicas de ida ao cinema integradas à recepção fílmica, a programação de salas, curadoria de mostras e festivais nelas organizadas, o mapeamento e a geolocalização de salas.
Aspecto
- O ST tem como base teórica estudos que contemplam os contextos históricos e contemporâneos da exibição cinematográfica e audiovisual, das questões de audiências e espectatorialidades, assim como dos arranjos tecnológicos e sociais dos dispositivos técnicos envolvidos nos processos de projeção, apresentação e espectação de imagens em movimento e seus novos desenhos estéticos e discursivos. Temos especial apreço pelas pesquisas historiográficas e transdisciplinares que desnaturalizam determinados posicionamentos tradicionais e históricos acerca da exibição cinematográfica e suas conexões com outras áreas do cinema, os filmes, as cidades, os públicos e as sociedades, aprofundando as camadas das histórias de cinemas através de uma postura que segue justamente no encalço das lacunas e dispersões de dados muitas vezes desprezados pela Grande História do Cinema ou quase perdidos em meio às problemáticas condições de preservação de materialidades e memórias do cinema/exibição (principalmente, da própria sala de cinema e de seus elementos tecnológicos relacionados à projeção), equipamentos que têm sucumbido a desmantelamentos e desaparecimentos há décadas. Nesse sentido Thomas Elsaesser recorre ao tema obsolescência como nostalgia, a partir da ideia de Hollis Frampton sobre o projetor (ou a última das máquinas de cinema), acrescentando que “ a obsolescência como impulso mimético rumo à recriação, recuperação e redenção pode abrir um rico campo de reflexão adicional, exatamente para remapear as fronteiras da história (do cinema)” (ELSAESSER, 2018, p.250).
Estamos diante de um viés de pesquisas que se debruçam sobre a arqueologia e ecologia das mídias, história oral, as produções de memória dos públicos, as análises de material de arquivo, programações de cinemas em jornais e folders, mapas e fotografias, as experiências de ida a campo (com inspirações etnográficas e arqueológicas), assim como da criação de bancos de dados e cartografias, ou sejam, de estratégias e métodos que se ligam à construção teórica e às propostas metodológicas comuns a perspectivas como, por exemplo, a da New Cinema History (Europa, EUA e Austrália), das Histórias de Cinemas (Brasil) e Estudos de Públicos (América Latina), ambientes que hoje reúnem pesquisadores internacionais e brasileiros cujos trabalhos são dedicados ao exame das salas de cinema, principalmente, os cinemas de rua, às dinâmicas envolvidas nas experiências dos públicos e formação de audiências e tudo aquilo que, para além da fruição fílmica, atravessa as vivências das pessoas em suas frequentações a espaços coletivos de exibição cinematográfica, comerciais e não-comerciais.
Em nosso caminho, questões relativas às artes da projeção (DOUGLAS; EAMON, 2009), novas questões curatoriais e, em suma, a problematização trazida por Mathieu Copeland sobre a exposição/exibição de um filme, “questão construída pela realidade da sala de cinema, lugar genérico – de exploração de suas modalidades: a tela, som especializado, uma duração” (COPELAND, 2015, p.5) se cruzam com os demais aspectos teóricos aqui levantados. Ao tomarmos obras que projetam em fachadas (trabalhos de videomapeamento) ou em outros locais fora da tela estamos diante de um ambiente midiático que entende e estende a sala de cinema para novos horizontes.
O ST ainda se define metodologicamente, de um ponto de vista exploratório em sentido literal muitas vezes, pela realização da PRÉ-SOCINE em torno das histórias de cinemas regionais, iniciativa lançada em 2016 na XX SOCINE, em Curitiba, e que tem ampliado a discussão sobre contextos locais de exibição, memórias dos públicos, condições de preservação e manutenção de salas de cinema, e democratização do acesso à grande tela, envolvendo não só os participantes do ST como a comunidade das cidades onde os encontros da SOCINE são realizados. Destaca-se ainda a exibição de filmes sobre as histórias de cinemas que o próprio Seminário reflete, alcançando assim mais um caminho para a elaboração de pensamento teórico sobre os eixos do ST. Igualmente merece destaque a Expedição arqueológica em busca do cinema perdido, atividade do ST que propõe um tour para o reconhecimento e registro de cinemas desativados ou ainda em funcionamento em ruas e praças de tais cidades.
Bibliografia
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VIEIRA, J. L. e PEREIRA, M. Espaços do sonho: cinema e arquitetura no Rio de Janeiro. RJ: Embrafilme, 1983 (mimeografado).
Coordenadores
- João Luiz Vieira
Wilson Oliveira da Silva Filho
Julio Bezerra