Trabalhos Aprovados 2017

Ficha do Proponente

Proponente

    Douglas Resende (UFF)

Minicurrículo

    Documentarista, doutor em Artes/Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e professor adjunto do Departamento de Cinema e Vídeo da UFF nas áreas do documentário e das pedagogias do cinema.

Ficha do Trabalho

Título

    O feedback como um “espaço comum” na prática do documentário

Seminário

    Cinema e educação

Resumo

    No decurso de uma pesquisa realizada junto com moradores de uma ocupação urbana de Belo Horizonte, aderimos à prática do feedback (ou do “cinema compartilhado”) como um modo de se produzir um espaço de partilha de experiências audiovisuais e de produção de comunidade, um “espaço comum” de troca e de aprendizagem mútua a abrigar uma pluralidade de olhares que constitui um território.

Resumo expandido

    No cotidiano de uma ocupação urbana espontânea autoconstruída na Região Metropolitana de Belo Horizonte e conhecida como Izidora, subsiste uma comunidade de cinema formada por uma pluralidade radical de sujeitos que filmam a vida política e cotidiana daquele território, salvaguardando a sua memória coletiva. Assim, a produção de sentido e da narrativa que se cria dentro daquela comunidade devem consideravelmente à prática do filme. A proposta da pesquisa que dá origem a esta comunicação tem sido a de produzir um espaço para ver juntos essa memória audiovisual – de modo a colocá-la em perspectiva e produzir novos registros, novas memórias, novas ações –, recorrendo ao dispositivo do feedback (ou do “cinema compartilhado”, como tenho preferido chamar), aquele praticado desde Flaherty e Rouch, até Coutinho e o conjunto dos realizadores contemporâneos do Vídeo nas Aldeias. Proponho considerarmos esse espaço de compartilhamento para um “ver juntos” como uma possibilidade de “espaço comum” na prática do documentário. Esse “comum” que qualifica aí politicamente o “espaço” significa a horizontalidade nos processos e a possibilidade de construção de um enunciado multivocal, plurissubjetivo – de modo a se buscar escapar às formas totalizantes (e totalitárias) tão constantes nas “verdades” autossuficientes dos modelos de “representação” tradicionais – e leva em conta principalmente as ideias em torno do “ser/estar-com” (e, logo, de um “fazer-com”) de Nancy, assim como as noções de um “Ser singular plural”, de “partilha da presença” e de “comparecimento” que compõem o conceito de comum no pensamento do filósofo. Se não existe presença sem comparecimento de uns diante dos outros, se só existe então co-presença e se o propósito ou a condição da existência é a coexistência, se não existe nem mesmo sentido no em-si-mesmo, a tarefa que se impõe é saber como coabitar o mundo. Como produzir um espaço capaz de abrigar as diferenças e lugares múltiplos que, juntos, possam produzir sentido? Isso significaria portanto pensar os meios, os processos, os modos de fazer, pensar antes da ideia de “obra” – como coabitar o mundo, pois o mundo não é algo que demanda ser fundado, mas que é feito para ser habitado (Desanti, 2003). A busca por um enunciado coletivo – exigência ética e política que há muito acompanha o cinema documentário – aparece aqui como uma aposta no encontro e na diferença enquanto potências produtoras de sentido e também como tentativa de responder à pergunta lançada por Didi-Huberman (2011): “Como fazer para que os povos se exponham a si mesmos e não ao seu desaparecimento? Como fazer para que os povos apareçam e adquiram forma.” Ao propor um espaço – ainda que improvisado e provisório – de visionagem compartilhada dentro daquela ocupação urbana, a comunidade de cinema que ali habita ganhou uma forma visível para si mesma e se reconheceu enquanto tal diante do espelho que se faz na tela. Como estratégia de resistência e de sobrevivência enquanto coletividade, essa comunidade tem lançado mão de práticas que reapropriam e articulam de um modo muito singular as possibilidades da tecnologia, subvertendo suas preconfigurações (tecnológicas, culturais) – algo próximo daqueles procedimentos “‘minúsculos’ e cotidianos” que “jogam com os mecanismos da disciplina e não se conformam com ela a não ser para alterá-los” (De Certeau). Interessa aqui, por fim, a aposta na dimensão pedagógica da prática do cinema compartilhado na medida em que produz um espaço de partilha de experiências audiovisuais e de produção de comunidade, fazendo-se esse “espaço comum” de troca e de aprendizagem mútua a abrigar a pluralidade de olhares que constitui um território. O dispositivo – filmar, ver juntos, filmar novamente – provoca um deslocamento e uma desestabilização dos lugares estabelecidos – quem filma, quem é filmado?, quem vê, quem é visto? – e situa a imagem no “espaço-entre” os sujeitos que se dispõem a partilhar uma experiência audiovisual.

Bibliografia

    BRASIL, André. Rever, retorcer, reverter e retomar as imagens: comunidades de cinema e cosmopolítica. In: Revista Galáxia, São Paulo, 2016.
    CERTEAU, Michel De. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.
    DESANTI; Jean-Toussaint; MONDZAIN, Marie José et al. Voir ensemble: douze voix autour d’un texte de Jean Toussaint Desanti. Paris, Gallimard, 2003Paris: Gallimard, 2003.
    DIDI-HUBERMAN, George. Coisa pública, coisa dos povos, coisa plural. In: SILVA, Rodrigo; NAZARÉ, Leonor (org.). A república porvir: arte, política e pensamento para o século XXI. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011.
    GUIMARÃES, César. O que é uma comunidade de cinema?. In: Revista Eco Pós: Rio de Janeiro, 2015 (pp. 44-56).
    NANCY, Jean-Luc. La communauté désoeuvrée. Paris: Christian Bougois Éditeur, 1999.
    _______________. Being singular plural. Stanford: Stanford University Press, 2000.
    _______________. El sentido del mundo. Trad. Jorge Manuel Casas. Buenos Aires: La Marca, 2003.