Ficha do Proponente
Proponente
- VINICIOS KABRAL RIBEIRO (UFRJ)
Minicurrículo
- Doutor em Comunicação e Cultura Pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre em Cultura Visual, pela Universidade Federal de Goiás. Graduado em Comunicação, nas habilitações de Publicidade e Propaganda e Relações Públicas, também pela UFG. Professor do departamento de História e Teoria da Arte, da Escola de Belas Artes da UFRJ.
Ficha do Trabalho
Título
- Quem nos protegeu? Infância afeminada, audiovisual e sexualidade.
Seminário
- Cinema Queer e Feminista
Resumo
- Como criança afeminada, monstruosa e violentada, demorei muito tempo a entender e a reelaborar certas narrativas que me foram contadas e impostas. Eu sentia vergonha da minha voz, do meu corpo e dos meus desejos. A ausência de imagens, personagens e histórias positivas fora do marco heterossexual acentuavam essa sensação de estranheza e solidão. O objetivo do artigo é buscar um diálogo entre infância, memória, sexualidade, o audiovisual e as marcas desse engendramento em nossas subjetividades.
Resumo expandido
- Uma das minhas maiores perturbações, enquanto criança marcada pela certeira homossexualidade futura, era a impossibilidade de ter um relacionamento, ficar sozinho e morrer de Aids. Mesmo que aos nove anos de idade eu não entendesse uma coisa ou outra, eram esses os cruzamentos ditos possíveis para uma vida gay. Essas certezas se acentuavam com a ausência de imagens e de pluralidades de formas de vidas, bem como com a hostilidade do ambiente familiar, escolar e social.
Filadélfia (Jonatham Demme, 1993), na infância, e Brokeback Mountain (Ang Lee, 2005), na adolescência, corroboravam com essa sensação de morte e solidão. Existiam outras produções com representações mais positivas da homossexualidade, com abordagens diferentes, mas não circulavam com facilidade. A cidade em que cresci, Caldas Novas, ao sul de Goiás, contava com poucas locadoras de VHS e DVD. Os acervos eram restritos a filmes comerciais e, eventualmente, era possível encontrar algo como Ken Park (Larry Clark, 2002) ou E Sua Mãe Também (Alfonso Cuarón, 2001).
Lembro-me de uma tarde do primeiro semestre de 2014, quando um amigo e eu fomos no Cine Estação de Botafogo assistir Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (Daniel Ribeiro, 2014). Eu senti saudades e nostalgia. Acabava de ver um filme que, se existisse há dez anos, teria evitado muitas feridas e frustrações. Não que o cinema fosse capaz de erradicar a homofobia ou mediar meus conflitos domésticos, mas por acreditar que alguns filmes poderiam me ofertar novas formas de entender e ver o mundo que me cercava. Como criança afeminada, monstruosa e violentada, demorei muito tempo a entender e a reelaborar certas narrativas que me foram contadas e impostas. Eu sentia vergonha da minha voz, do meu corpo, dos meus questionamentos e dos meus desejos. Quando nos mudamos de Mutunópolis, norte de Goiás, para Caldas Novas, senti um grande alívio. Ficavam para trás os abusos sexuais e as humilhações. Era o que eu imaginava. Eve Sedgwick (1991), em um artigo em que discute os pânicos morais em torno da criança afeminada, chama atenção para a vigilância de gênero e sexualidade que se instauram no corpo infantil. Essa vigília tem como objetivo coibir qualquer manifestação de desvio da norma sexual e preparar o terreno para a heterossexualidade compulsória. Um dos grandes efeitos desse processo de monitoramento corporal da performance de gênero é o auto-ódio e a invisibilidade da criança afeminada nos debates e pautas políticas dos movimentos de Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais (LGBT). Estou olhando para a criança que fui, no que me tornei. Eu queria protegê-la. Ir em Mutunópolis, pegá-la pela mão. Desenhar em suas bochechas pequenos corações com um batom vermelho. Abrir um armário com vestidos e sapatos, pentear seus cabelos e elogiar sua voz. Pedir para que ela dançasse a música que mais gostasse, que colocasse as mãos na cintura para ser fotografada. Ensiná-la a se proteger como Madame Satã e a gritar para todo mundo: “eu sou bicha porque eu quero”. Depois, a gente falaria de futuro, do que ela se tornaria. Somos esses corpos frágeis que desafiam a polícia de gênero. E essa vigia normalizadora vai além dos auspícios da sexualidade: almeja sobretudo assaltar o desejo pela vida, a esperança em um outro mundo mais aprazível. São os corpos das crianças transviadas, como dito por Edelman (2014), que atormentam o futuro político, estético e econômico de uma sociedade baseada na morte e na necropolítica (Preciado, 2014). Vamos ofertar nossa carne para o banquete insaciável desse “moinho de gastar gente” (Darcy Ribeiro, 1995)? Pedir para adentrar ao círculo da respeitabilidade através da monogamia e das práticas sexuais vistas como sadias (Rubin, 1989)? Ou vamos nos conduzir à fantasia, ao sujo, à margem, aos becos e vielas e nos negar conduzir o mundo ao necrofuturo? O propósito do artigo é pensar por meio do audiovisual as relações entre infância, sexualidade e memória. Falar das nossas feridas e buscar afetos, cuidados e curas.
Bibliografia
- EDELMAN, Lee. No al futuro. La teoria queer e la pulsión de muerte. Bacelona/Madrid: Egales, 2014.
PRECIADO, Paul. B. O feminismo não é um humanismo. Jornal O Povo. Fortaleza, 24 nov 2014. Disponível em: http://www.opovo.com.br/app/colunas/filosofiapop/2014/11/24/noticiasfilosofiapop,3352134/o-feminismo-nao-e-um-humanismo.shtml. Acesso: 10 abr 2017.
____. Quem defende a criança queer? Revista Geni, N. 10, 2014. Disponível em: http://revistageni.org/10/quem-defende-a-crianca-queer/. Acesso: 02 out 2016.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. A formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
RUBIN, Gayle. Reflexionando sobre el sexo: notas para una teoría radical de la sexualidad. In: VANCE, Carol (Org.). Placer e peligro: explorando la sexualidad feminina. México: Revolución, 1989.