Ficha do Proponente
Proponente
- Txai de Almeida Ferraz (UFMG)
Minicurrículo
- Mestrando em Comunicação Social na UFMG. Possui graduação sanduíche em Cinema e Audiovisual na UFPE – Université Rennes 2 (Brasil-França). Realizador de documentários e gestor de mídias sociais em projetos de cinema, com experiência na distribuição de mais de dez longas-metragens. Diretor artístico do MOV – Festival Internacional de Cinema Universitário de Pernambuco. Organizador do livro Cinema Plural: Imagens do Contemporâneo na Visão de Jovens Pesquisadores do Brasil (Editora UFPE, 2014).
Ficha do Trabalho
Título
- Entre o fora e o dentro da cena, o descontrole na construção do “eu”
Resumo
- No curta-metragem No interior da minha mãe (2013), de Lucas Sá, o realizador documenta uma viagem de sua família para uma pequena cidade no Maranhão, por meio de experimento que suscita ambiguidades da prática autobiográfica no cinema. A partir da análise da obra e de entrevista com o realizador, propomos examinar a passagem do “eu de fora” da narrativa para o “eu personagem”, construído no filme, e sua implicação com estratégias de descontrole da escritura fílmica.
Resumo expandido
- Em No Interior da Minha Mãe (2013), o diretor Lucas Sá filma uma viagem de seu núcleo familiar para a pequena São João dos Patos, município onde sua mãe e tias viveram boa parte de suas vidas. Com a câmera sempre à mão, o realizador tenta impor a esse registro familiar um regime observacional, como se não estivesse em cena. O dispositivo, no entanto, é desmontado pelos seus parentes, que insistem em dirigir-se ao antecampo, revelando uma motivação autobiográfica da empreitada e uma implicação clara do diretor com os sujeitos filmados.
Mas a obra não se estrutura apenas em torno desta questão, dando a ver um interesse oscilante que passeia entre vários “microtemas” suscitados pela viagem, como a ida a um parque de diversões e a subida a um mirante da cidade. Em meio a esses fragmentos, um personagem “do diretor” surge na narrativa de maneira apenas insinuada, rarefeita, distante de uma centralidade egóica que unificaria as figuras de cineasta e protagonista na trama de sua busca familiar.
O “eu” que surge na narrativa é desmembrado, subsumindo no mundo com o qual é constantemente confrontado. Se por um lado o personagem assinala fechamentos, estes também não se dão sem movimentos contrários de abertura e fragmentação. De acordo com a pesquisadora Roberta Veiga (2016), que formula o conceito de “autobiografia não-autorizada”, o sujeito que é enunciado e enunciador ao mesmo tempo tem dificuldade de ter total domínio sobre a narrativa em que se inscreve, fazendo-o perder as rédeas de sua própria obra, em um fazer estético que o conforma não como “eu” monolítico, mas como um “outro”, poroso ao acaso e ao fluxo, que surge no ato mesmo da escrita.
Há então uma forte noção de processualidade em jogo, entendida aqui como a capacidade do filme desdobrar-se no tempo e confundir-se com a experiência vivida, “sendo por ela limitado, estimulado, transformado, conformado ou até mesmo expandido, potencializado” (MESQUITA, 2011, p. 18). Na especificidade do jogo da escrita de si, a processualidade se dá justamente na distância entre o “eu de fora” e o “eu de dentro da tela”. Este último construído em ato, processualmente, e nunca apriorístico.
Diante desta perspectiva, torna-se inevitável não se interrogar sobre aspectos extra-fílmicos, e em que medida em que eles podem nos ajudar a compreender com mais clareza como a passagem do “eu de fora” para “dentro” da narrativa pode operar. O presente trabalho – fruto de uma dissertação em curso -, tomou então a opção metodológica de enriquecer o corpus de análise com informações coletadas em entrevista com o diretor sobre o processo fílmico. Em nosso contato, Lucas Sá revelou ter feito uso de trucagens deliberadas na montagem para diminuir sua centralidade no filme: apagou sua própria voz inúmeras vezes e provocou conscientemente “aberturas” na narrativa que retiram o filme do eixo mais autobiográfico, entre outras estratégias de descentramento de sua figura.
Desta maneira, onde antes acreditávamos estar diante de uma experiência de descontrole da escrita em primeira pessoa, a entrevista nos mostrou que também aí podem residir cálculos e planejamentos. Longe de reforçar por vias tortas uma pretensa coincidência entre o “eu de dentro” e o de “fora da tela”, acreditamos todavia que a inscrição do eu na narrativa sempre guardará algo de escapável, extrapolando aos planos do realizador, mesmo quando estes buscam emular um descontrole.
O que parece ficar claro, sem sombra de dúvidas, é que essa experiência de realização não pode ser tomada como ingênua diante de seus próprios efeitos. Em No Interior da Minha Mãe, a indicialidade da imagem documentária é posta a confundir o espectador. Nem tudo que aparece como descontrole ou como risco – embora sirva perfeitamente a este fim narrativo -, pode ser tomado assim quando considerado o plano extrafílmico, o que revela um jogo nuançado e complexo do movimento de construção do eu.
Bibliografia
- BRASIL, André. Formas do antecampo: performatividade no documentário brasileiro contemporâneo. Revista Famecos, Porto Alegre, v. 20, n. 3, pp. 578-602, set./dez. 2013.
CASTELLO BRANCO, Lúcia. A traição de Penélope – uma leitura feminina da memória. Tese (Doutorado em Letras – Literatura Comparada) – Universidade Federal de Minas Gerais, 1990.
CORRIGAN, Timothy. O filme-ensaio – desde Montaigne e depois de Marker. Campinas: Papirus, 2015.
LOPES, Silvina Rodrigues. Literatura, defesa do atrito. Chão da Feira, 2012.
MESQUITA, Cláudia. Obra em processo ou processo como obra? Transcrição de fala que integrou o ciclo Cinema Brasileiro Anos 2000, promovido pelo CCBB, no dia 5 de maio de 2011, no Rio de Janeiro.
RENOV, Michael. The Subject of documentary. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2004.
VEIGA, Roberta. Autobiografia “não-autorizada”: por uma experiência limiar no documentário na primeira pessoa. Doc On-line, n. 19, pp. 42-59, mar. 2016.