Ficha do Proponente
Proponente
- Ilana Feldman (Unicamp)
Minicurrículo
- Ilana Feldman é doutora em cinema pela Escola de Comunicações e Artes da USP, com passagem pelo Departamento de Filosofia, Artes e Estética da Universidade Paris VIII, onde desenvolveu a tese “Jogos de cena: ensaios sobre o documentário brasileiro contemporâneo”. Atualmente, realiza pós-doutorado em Teoria Literária no Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP, com pesquisa sobre cinema, testemunho e autobiografia, a partir dos diários cinematográficos de David Perlov.
Ficha do Trabalho
Título
- A mãe, imagem impossível: Perlov, Barthes e a tarefa do luto
Seminário
- Cinema e literatura, palavra e imagem
Resumo
- Nos diários de David Perlov, a busca pela “imagem fatal” de Anna, mãe do cineasta, aquela de quem ele não pode falar e muito menos mostrar, é o que estrutura a tentativa de tradução do trauma para o cinema. Contemporâneo dos diários, Roland Barthes escreve o seu “A câmera clara”, onde reflete sobre a dificuldade de olhar para a fotografia de sua mãe, cuja imagem também não consegue publicar. Em ambos os casos se impõe, junto a uma reflexão sobre os limites da imagem, a tarefa do luto.
Resumo expandido
- Essa apresentação visa apresentar o desfecho de uma pesquisa sobre um ponto estrutural, embora sempre nebuloso, presente nos diários cinematográficos de David Perlov, cineasta brasileiro-israelense, consagrado em Israel como o pioneiro do cinema moderno e conhecido por sua obra autobiográfica, “Diário 1973-1983” (1985) e “Diários revistados 1990-1999” (2000). Em ambos os diários, a busca pela “imagem fatal” de Anna, mãe de Perlov, aquela que, analfabeta, assinava o sinal da cruz no lugar do nome, é o que estrutura a passagem de um cinema de anotações e fragmentos a uma obra romanesca; passagem de um trauma a uma tentativa de tradução, figuração ou transposição da língua do luto e da melancolia para o cinema. Serão necessários vinte anos para que Perlov consiga corrigir o nome da mãe, grafado errado em sua lápide de pedra, Anna Perlof com “f” em vez de Perlov com “v”, cujo “f’ sempre lembrará ao filho o sinal da cruz. Ao fim da jornada, Perlov precisa, por meio do luto e para assegurar a continuidade da vida, abandonar a origem no momento mesmo em que ela é reencontrada.
Habitando o lugar do lugar do trauma – irrepresentável por excelência –, Anna é uma presença fantasmática, sempre envolta em brumas, aquela de quem Perlov não pode falar, senão de maneira alusiva, e cuja imagem não consegue mostrar, senão de maneira breve e indireta, sem qualquer identificação, como se vê no segundo capítulo do “Diário”. Foi também lutando para conseguir fazer o luto da mãe que Roland Barthes escreve seu belo ensaio autobiográfico, “A câmera clara” (1980). Nesse livro, contemporâneo dos diários de Perlov, Barthes inventava uma forma de narrar, misturando reflexão crítica, imagens, aforismas e narrativa biográfica para dar conta da dificuldade de sustentar o olhar sobre a fotografia de sua mãe, cuja imagem ele não pode publicar. “Diante da foto de minha mãe criança, eu me digo”, escreveu Barthes, “ela vai morrer. (…) Que o sujeito já esteja morto ou não, qualquer fotografia é essa catástrofe”.
Tais articulações já haviam sido apontadas em artigos anteriores e nas diversas apresentações de uma “palestra performática” sobre a pesquisa em curso, inclusive no último encontro da Socine em 2016. Porém, neste momento de encerramento do percurso, gostaria de aprofundar essas questões e lançar algumas hipóteses, à luz não apenas do cinema como da teoria literária, da fotografia e da psicanálise. Acredito que, à estética da presença, segundo a qual a fotografia seria um ápice do real e da inscrição do referente, tanto Perlov como Barthes propõem uma estética da ausência, da perda e da desaparição. Uma estética do impossível, como defende Alain Badiou – quem sabe uma “imagem impossível” no lugar daquela “imagem fatal” da mãe de Perlov –, que possa fazer frente à impotência do trauma, sustentando assim a necessidade do luto.
Se não há consolo para o desaparecimento, ele deixa rastros. E é com esses vestígios, com aquilo que não se escreve e que se inscreve, que resta e que se perde, enfim, com aquilo que falta – a imagem da mãe –, que Perlov e Barthes podem legar a nós uma fundamental reflexão sobre a parcialidade radical da imagem e os limites, ou mesmo impossibilidades, da representação. O que nos permite apostar que, com frequência, as escritas de si, autobiográficas, tornam-se escritas do trauma e do luto, como se a singular experiência da dor e da separação, vivida por cada um como irreparável, fosse a condição para que se efetivasse uma passagem do singular ao coletivo, do pessoal ao político. Nesse sentido, o singular, no âmbito da autobiografia, não pode ser pensado como o primado do indivíduo, mas como efeito da marca que cada um – com seu “ativo da dor”, segundo Barthes, com seu estilo – inscreve no coletivo. Porque só o trabalho do luto, compreendido aqui como um trabalho de tradução e transposição, a um só tempo tarefa e desistência, pode colocar a vida em movimento.
Bibliografia
- BADIOU, A. “Por uma estética da cura analítica”. A psicanálise & os discursos. Escola Letra Freudiana. Rio de Janeiro, n. 34/35, ano XXIII, p. 237-242, 2004.
BARTHES, R. A câmera clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
___________. Diário do luto. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
___________. A preparação do romance. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
BENJAMIN, W. “Apequena história da fotografia”. In: Obras escolhidas – magia e técnica, arte e política, vol.01. São Paulo: Brasiliense, 1996.
BERTA, Sandra Leticia. Escrever o trauma, de Freud a Lacan. São Paulo: Annablume, 2015.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Images malgré tout. Paris: Minuit, 2003.
FELDMAN, I. “Não entender: arquivos, documentos e criação no encontro com o Diário, de David Perlov”. In: BLANK, T.; MACHADO, P. (Orgs.). E-book Seminário Internacional Arquivos em Movimento. Fundação Getúlio Vargas, 2017 (no prelo).
FREUD, S. Luto e melancolia. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
NANCY, J-L. Le regard du portrait. Paris: Gali