Trabalhos Aprovados 2017

Ficha do Proponente

Proponente

    Mariana Duccini Junqueira da Silva (UNICAMP)

Minicurrículo

    Doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP. Atualmente desenvolve estágio de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Multimeios, Instituto de Artes – Universidade Estadual de Campinas (IA-UNICAMP), com bolsa CAPES (PNPD-CAPES).

Ficha do Trabalho

Título

    “Um dia na vida”: princípio de arquivo e desnaturalização da violência

Mesa

    Figurações da violência no documentário

Resumo

    O documentário “Um dia na vida” (Eduardo Coutinho, 2010) compõe-se a partir de fragmentos da programação dos canais abertos da TV brasileira. Em um exercício de compilação dos excertos, o filme apresenta como gesto estético fundamental a constituição de um arquivo, ou seja, a articulação orgânica dos elementos segundo um princípio de enunciabilidade. No processo, revela-se o funcionamento de um imaginário em que a violência conforma o sentido de muitas das práticas sociais contemporâneas.

Resumo expandido

    Estratégia recorrente no espectro do documentário contemporâneo, o exercício da compilação de fragmentos audiovisuais para a estruturação de novos enunciados fílmicos tende a um reinvestimento de sentidos que interroguem ou subvertam crenças, valores e estatutos de veredicção em certa medida estabilizados (em vista de sua produção e circulação em contextos sociais distintos daqueles cotejados pelo próprio filme de compilação).
    Nesse processo, a possibilidade de ressignificação de versões históricas outrora circulantes ou mesmo de práticas coletivas contemporâneas se complexifica, na medida em que, paralelamente à reinterpretação contextual dos dados, procede-se a uma nova forma de organização da materialidade sonoro-visual dos enunciados, por meio da montagem, investida autoral que viabiliza a crítica a discursos conformadores do poder em épocas diversas. No substrato de imagens e sons, sempre restará algo que não se decompõe, mas que, ao mesmo turno, poderá ensejar diferentes processos de reelaboração discursiva. Com a proposição de novas conexões entre os fragmentos, é plausível inferir outras possibilidades de experiência estética, ela própria de viés político, já que reconfigura a escala valorativa dos acontecimentos e ações subjetivas, assim como as formas de distribuição do tempo e a organização do espaço.
    O documentário “Um dia na vida” (Eduardo Coutinho, 2010) é integralmente composto tendo como material de base fragmentos originários da programação dos canais abertos da televisão brasileira, gravados pela equipe de realização durante 24 horas (correspondente ao dia 1º. de outubro de 2009). Justapostos por meio da montagem em corte seco, sem nenhum tipo de intervenção no interior dos planos, os excertos se sucedem em um movimento análogo ao de “zapping”. Contudo, diferentemente da ação quase automática (e mesmo dispersiva) desse procedimento, o filme propõe, por sua própria natureza, uma experiência de visionamento em que a duração dos segmentos não permite a interrupção deliberada por parte do espectador (efetivamente, ela só ocorre conforme a própria lógica estruturante da narrativa do documentário).
    Tais procedimentos, ao instituírem uma organicidade aos materiais em compilação, tornam sensível o caráter comum de violência e constrangimento amplamente naturalizado nos enunciados de base, seja em telejornais, programas religiosos ou de variedades; seja em desenhos animados, telenovelas ou mesas de debate.
    O sentido de violência torna-se tangível, dessa maneira, a partir de um gesto fundamental da obra de Coutinho: a constituição do filme nos termos de um arquivo, processo que conjuga os fragmentos segundo um sistema de enunciabilidade (Foucault, 1986). Ao mesmo tempo em que rege a emergência dos enunciados como acontecimentos singulares, o princípio de arquivo impede sua acumulação amorfa e ininterrupta, operacionalizando regularidades que determinam não apenas a forma de existência desses enunciados, mas também sua relação com outros enunciados. É ainda nessa perspectiva, lembra-nos Foucault, que o arquivo dinamiza os sistemas de historicidade (assim como de desaparecimento) inerentes às práticas sociais.
    O gesto de arquivo, elemento enunciativo cardeal em “Um dia na vida”, confere certo sentido de permanência e compleição a imagens e sons destinados à dispersão dos fluxos da programação televisiva. Intenta a construção de uma experiência espectatorial em que a retórica da violência possa ser distinguida como princípio de organização e de rentabilidade narrativa dos discursos – e não como expressão tautológica da “vida como ela é”. Cria meios propícios a um exercício de memória, não em termos da vocação à posteridade inerente a qualquer filme, mas sobretudo por fornecer algumas chaves de legibilidade para os fragmentos em compilação, apontando, nesse processo, para o funcionamento de um imaginário em que a violência, em suas diversas acepções, conforma o sentido de muitas das práticas sociais contemporâneas.

Bibliografia

    BENVENISTE, E. O aparelho formal da enunciação. In: Problemas de linguística geral II. Campinas: Pontes, 1989, pp.81-90.
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    DIDI-HUBERMAN, G. Remontages du temps subi: Lóeil de la histoire, 2. Paris: Minuit, 2010.
    FOUCAULT, M. O enunciado e o arquivo. In: A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986.
    ________. Qu’est-ce qu’un auteur?. In: Dits et écrits – Tome 1. Paris: Gallimard, 1994, pp. 789-821.
    LEYDA, J. Films beget films. New York: Hill and Wang, 1964.
    RICOEUR, P. Memória, história, esquecimento. Palestra realizada na Conferência Internacional Hauting Memories? History in Europe after authoritarianism. Budapeste: Publicações Universidade de Coimbra, 2003. Disponível em: http://www.uc.pt/fluc/uidief/textos_ricoeur/memoria_historia