Trabalhos Aprovados 2017

Ficha do Proponente

Proponente

    Victor Ribeiro Guimarães (UFMG)

Minicurrículo

    Doutorando em Comunicação Social pela UFMG. Crítico de cinema na revista Cinética desde 2012, tem ensaios publicados em revistas como Lumière (Espanha), Senses of Cinema (Austrália), Desistfilm (Peru) e La Furia Umana (Itália). É autor de O hip hop e a intermitência política do documentário (PPGCOM/UFMG, 2015), organizador de Doméstica (Desvia, 2015) e co-organizador de Limiar e partilha: uma experiência com filmes brasileiros (PPGCOM/UFMG, 2015).

Ficha do Trabalho

Título

    Caminhar sobre os cacos da linguagem: Mario Handler e Aloysio Raulino

Seminário

    Teoria dos Cineastas

Resumo

    A partir da comparação entre Carlos, cine-retrato de un “caminante” en Montevideo (Mario Handler, 1965) e Teremos Infância (Aloysio Raulino, 1974), busco investigar como essas duas incursões notáveis na tradição do retrato fílmico na América Latina são igualmente o lugar de interrogações teóricas densas, que buscam mergulhar na crise da interação entre cineasta e sujeitos filmados, problematizar a condição do espectador e questionar o estatuto do encontro no cinema.

Resumo expandido

    Entre 1964 e 1965, o então jovem cineasta Mario Handler acompanha, durante dez meses, a rotina de Carlos, um habitante das ruas da capital uruguaia, entre suas longas jornadas pela cidade, a rememoração de sua trajetória de vida e a luta pela sobrevivência diária. O resultado é o média-metragem Carlos, cine-retrato de un “caminante” en Montevideo (Mario Handler, 1965), um dos pontos altos da inflexão vanguardista atravessada pelo documentário na América Latina na década de 1960. Em 1974, Aloysio Raulino realiza Teremos Infância, filme ainda desconhecido contemporaneamente, embora tenha sido premiado à época no prestigioso festival de Oberhausen. O filme se organiza a partir de um encontro com Arnulfo Silva, homem que viveu nas ruas de São Paulo durante a infância e agora reflete sobre seu passado, mas se abre para uma deriva com duas crianças que rodeiam a cena. Numa junção prodigiosa entre o improviso e a meditação intelectual do ensaio, Raulino interroga o estatuto do encontro no documentário, ao abraçar o fracasso da interação com as crianças como matéria fílmica primordial.
    Partilhando de um ímpeto político-poético comum (desejo de intervenção e trabalho formal caminham juntos), os filmes se engajam num duplo gesto: a atenção à singularidade do protagonista – os gestos, as posturas, a impostação da voz – convive com o ensaio de uma radiografia do país a partir de um ponto de vista marginal. Carlos é também o Uruguai e Arnulfo é também o Brasil, mas, ao contrário da sintomatologia comum ao documentário de tipo sociológico, os personagens não são tomados como indícios da tragédia social, e sim como seus analistas privilegiados. Sua retórica não é a da denúncia, muito menos a da queixa (lugares de fala majoritariamente reservados ao povo no documentário latino-americano da época), mas a da narração memorialista e a da argumentação eloquente. O vocabulário sofisticado de Arnulfo embaralha a fronteira entre os intelectuais e o povo (hierarquia dramatúrgica e política solidamente assentada na tradição documentária), enquanto a perspicácia e o humor mordaz de Carlos o convertem em intérprete singular da realidade uruguaia.
    O ímpeto revelatório e inaugural que atravessa a primeira metade da década no cinema da região – de Tire Dié (Fernando Birri, 1960) a Maioria Absoluta (Leon Hirszman, 1965) – está presente em Carlos de forma decisiva: numa só tacada, descobrir uma cidade, revelar uma outra franja da humanidade e inventar uma cinematografia, em um país praticamente sem nenhuma produção cinematográfica até então. Filmando dez anos depois, Raulino tem sob os ombros uma sólida tradição cinematográfica de investigação da realidade brasileira forjada na década anterior, com seus desdobramentos, suas crises internas e seus questionamentos radicais. Quando liga a câmera, no entanto, é como se o frescor da descoberta do primeiro Cinema Novo o habitasse novamente, ao mesmo tempo em que autocrítica e o desespero pós-AI-5 se inscrevem decisivamente na carne do filme.
    A partir de motivos semelhantes – a marginalidade, a vida na rua –, e de modalidades de encenação e de montagem muito distintas, ambos os filmes ensejam uma interrogação comum: a crise de seus personagens – excluídos da sociedade que os rechaça –, se duplica em uma posta em crise da enunciação e da espectatorialidade. A reflexão metacinematográfica, contudo, não exclui o mergulho decidido na potência da interação. Nem a crença exacerbada no poder de revelação (que em tantos filmes resultou no apaziguamento das relações entre quem filma e quem é filmado), nem o recuo para a pura meditação metapoética (que noutras tantas se converteu na anulação do referente). Cada um a seu modo, Handler e Raulino decidem esgarçar a linguagem, preservando, contudo, a possibilidade de caminhar sobre seus cacos.

Bibliografia

    AUMONT, Jacques. “Pode um filme ser um ato de teoria?”. In: Revista Educação e Realidade, nº 33 (1), jan/jun 2008, PP. 21-34.
    BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e Imagens do Povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
    ______________________. “A discreta revolução de Aloysio Raulino”. In: CARDOSO VALE, Glaura (org.). Catálogo do 17º Forum.doc BH. Belo Horizonte: Associação Filmes de Quintal, 2013.
    BRENEZ, Nicole. De la figure en general et du corps en particulier. Bruxelles : De Boeck, 1998.
    VANCHERI, Luc. Film, Forme, Théorie. Paris : L’Harmattan, 2002.
    _________________. Les pensées figurales de l’image. Paris : Armand Collin, 2011.