Ficha do Proponente
Proponente
- Maria Cristina Franco Ferraz (UFRJ)
Minicurrículo
- Professora Titular de Teoria da Comunicação da ECO/UFRJ com três estágios pós-doutorais em Berlim. Doutora em Filosofia pela Sorbonne. Autora das obras: Nietzsche, o bufão dos deuses (Rio: 1994 e Paris: 1998), Platão: as artimanhas do fingimento (Rio: 1999; Lisboa: 2010), Nove variações sobre temas nietzschianos (Rio: 2002), Homo deletabilis – corpo, percepção e esquecimento: do século XIX ao XXI (Rio : 2010 e Paris : 2015) e Ruminações : cultura letrada e dispersão hoperconectada (Rio: 2015).
Ficha do Trabalho
Título
- “Queda livre” nos labirintos da avaliação
Mesa
- Distopias contemporâneas: Black Mirror, tecnologias e subjetividade
Resumo
- A discussão sobre o episódio “Queda livre” enfatizará a lógica de funcionamento da avaliação, atrelada às mídias sociais. As tecnologias serão entendidas em sua adequação a modos de vida pautados pelo capitalismo financeirizado e pelo modelo empresarial. Iremos explorar a tematização do “diagrama da avaliação” (José Gil) e as reflexões de Büttgen e Cassin sobre avaliação de desempenhos. Por fim, serão enfatizadas diferenças entre tal diagrama e o sentido nietzschiano de avaliação.
Resumo expandido
- A proposta parte da análise crítica do primeiro episódio da terceira temporada da série Black Mirror (“Queda livre”/Nosedive, no original), no qual são enfatizados os labirintos da avaliação de todos por todos, em seus vínculos com a disseminação de tecnologias informacionais e comunicacionais em “tempo real”. Será explorada a lógica de funcionamento da avaliação, atrelada às mídias sociais, discutindo a tendência usual de atribuir às tecnologias a “causa” de fenômenos sociais e subjetivos. As tecnologias serão pensadas em sua adequação a modos de vida pautados pelo capitalismo financeirizado e pelo modelo empresarial, igualmente expressos pelo ícone Smiles, pela felicidade espetacularizada na superfície do rosto salientada no episódio, .
Avançando nessa questão, será retomada a noção de “diagrama da avaliação”, desdobrado por José Gil no livro Em busca da identidade – o desnorte. Referido à leitura deleuzeana de Foucault, o conceito de diagrama funciona como “um mapa co-extensivo à sociedade que cartografa as relações de poder que circulam por toda parte” (Gil, 2009, p. 51). A avaliação, que se estende tendencialmente a todas as esferas da vida (da saúde corporal e mental ao regime de trabalho), promove mecanismos matizados de exclusão, suscitando a exacerbação de sensações de incompetência e inferioridade. A mensuração por comparação e o ranqueamento com vistas ao acirramento da competitividade são seus mecanismos e efeitos mais evidentes. Privatiza-se o mal-estar, o que tem por efeito mitigar ou mesmo inviabilizar a visão crítica acerca da lógica de funcionamento pregnante no mundo em que se vive.
As perspectivas abertas por Gil serão relacionadas às reflexões de Büttgen e Cassin sobre a avaliação de desempenho acadêmico. Para ambos os autores, o termo performance opera a junção entre o mais objetivamente mensurável (indicadores de desempenho de uma máquina, de uma economia, por exemplo) e o aspecto mais singular de um ato individual, aquilo que não se repete – a performance de um cavalo, de um campeão. Essa palavra mágica faz da qualidade uma propriedade emergente da quantidade. Os autores ressaltam que a “cultura de resultados”, a lógica da “coopetição” (fusão entre cooperação e competição), o modelo de avaliação calcado em performances marcam a convergência e a circularidade entre sistemas de medição acadêmica e o programa Google.
Por fim, o diagrama da avaliação será contraposto ao sentido nietzschiano de avaliação, radicalmente diverso do “julgamento” de cunho moral, midiático e político. Para Nietzsche, avaliar não se confunde com julgar. Julgar pressupõe a referência a sentidos e valores já dados e tomados como universais. Estabelece uma coreografia na qual a instância judicativa se exclui do campo do embate. Quando se julga, parte-se da negação do outro como mau, injusto, desonesto, o que tem por efeito reforçar a pretensa ingenuidade, pureza ou idoneidade daquele que emite o juízo. Esse gesto que, fundado na negatividade, remete à moral como um sistema de valores que se pretende não inventado e desinteressado, está presente nas práticas políticas e midiáticas fundadas no esquema rudimentar eles/nós.
A discussão acerca do tema ganha, atualmente, uma importância crucial, na medida em que o mecanismo do julgamento tem pautado a cena pública, tanto em redes sociais quanto em jogos políticos. Quando se confunde atualmente o exercício crítico com “julgamento”, pretende-se enfraquecer e anular o movimento reflexivo, inserindo-o na camisa de força da moral. Avaliar é muito mais difícil e nuançado. Eis o que o sentido deste trabalho, que parte da análise do episódio de Black Mirror não para julgar a avaliação, mas para estimar as forças que nela se exprimem e suas implicações para a vida e o pensamento.
Bibliografia
- BÜTTGEN, Philippe; CASSIN, Barbara. “’J’en ai 22 sur 30 au vert’. Six thèses sur l’évaluation”. In: ZARKA, Yves Charles (org.). Cités. L’idéologie de l’évaluation (la grande imposture). Vol. 37. Paris: PUF, 2009.
DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
EHRENBERG, Alain. O culto da performance: da aventura empreendedora à depressão nervosa. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2010.
FERRAZ, Maria Cristina Franco. Ruminações: cultura letrada e dispersão hiperconectada. Rio de Janeiro: Garamond/FAPERJ, 2015.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I (A vontade de saber). Rio de Janeiro: Graal, 1980.
FREIRE FILHO (org.). Ser feliz hoje: reflexões sobre o imperativo da felicidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.
GIL, José. Em busca da identidade – o desnorte. Lisboa: Relógio d’Água, 2009.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.