Ficha do Proponente
Proponente
- Ana Caroline de Almeida (UFPE)
Minicurrículo
- Ana Caroline de Almeida, aluna doutoranda do Programa de Pós-Graduação de Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. Escreve há mais de 15 anos sobre cinema, é integrante da Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e do coletivo nacional Elviras, formado por mulheres que escrevem e pensam o cinema. Ministrou por duas vezes a oficina “Para além do teste Bechdel: representação da mulher no cinema”, no Centro Cultural Benfica (UFPE) e no FestCine 2016.
Ficha do Trabalho
Título
- De dentro do espelho: a imagem-cristal em Laura Mulvey e Agnès Varda
Resumo
- O artigo analisa como o conceito deleuziano de imagem-cristal potencializa uma leitura feminista de duas sequências cinematográficas que, em comum, além de terem sido feito por duas diretoras feministas, usam espelhos como objetos centrais de cena. As sequências estão nos filmes Enigmas da esfinge (1977), de Laura Mulvey, e As praias de Agnès (2008), de Agnès Varda. A partir delas, será feita uma aproximação entre a ideia de imagem-tempo e o debate sobre a condição existencial de ser mulher.
Resumo expandido
- O artigo faz uma análise sobre como o conceito deleuziano de imagem-cristal potencializa uma leitura feminista de duas sequências cinematográficas realizadas em tempos distintos, por diretoras distintas, mas ambas com um elemento em comum: o uso de espelhos como objeto central de cena. As sequências em questão estão nos filmes “Enigmas da esfinge” (1977), filme experimental de Laura Mulvey, e “As praias de Agnès” (2008), documentário de Agnès Varda, e será a partir delas que será feita uma aproximação entre as aberturas analíticas da imagem-tempo e o debate sobre a condição existencial de ser mulher.
Quando Laura Mulvey e Agnès Varda filmam suas respectivas sequências cinematográficas em um cenário onde elas mesmas se auto referenciam e se refletem, o imaginário do espelho está atravessado nelas, ainda que suas motivações para o uso desse artifício sejam completamente diferentes: enquanto Mulvey quer discutir as fundações psicanalíticas sobre o encarceramento da própria imagem da mulher, e por isso a filma dentro de ambiente fechado e escuro, Varda abre suas imagens para um debate sobre a relação entre cinema, corpo e memória diante do horizonte ilimitado de uma praia.
Na sequência analisada do filme de Laura Mulvey, os espelhos e os reflexos multiplicados das personagens, muito antes de provocarem as interpretações psicanalíticas propostas por Mulvey, nos deslocam para o indiscernível, um espaço que agrega o duplo e atualiza o virtual em uma só superfície. As imagens projetadas nessa sala de espelhos não são reflexos, mas a coisa em si. No último giro da câmera pelo apartamento, uma nova personagem surge: a da própria diretora e sua câmera, agora em uma posição frontal a um desses espelhos. Eis a percepção da percepção, a fisgada da autoconsciência cinematográfica na imagem de uma mulher que expõe seu próprio corpo como testemunho de sua autoria. Temos, assim, um típico regime cristalino do cinema, em que “a descrição vale por seu objeto, o substitui, cria-o, apaga-o a um só tempo (…) Agora é a própria descrição o único objeto decomposto, multiplicado” (DELEUZE: 2005: 155).
No filme de Agnès Varda, a imagem-cristal se põe de três formas: na elaboração metafísica de um cinema que, ao se olhar no espelho, manifesta sua autoconsciência de ser cinema e, com isso, rompe com a premissa narrativa de uma câmera invisível; na inseparável projeção de Agnès Varda simultaneamente como autora agente, personagem reagente e cenário exposto (“se abríssemos pessoas, encontraríamos paisagens, se abrissem a mim encontrariam praias”, ela narra em off), revelando, a partir de seus reflexos, a sua própria multiplicidade e, finalmente, na transformação dessa praia em um espaço onde a diretora irá desterritorializar objetos de afeto e extratos da memória: vemos fotos antigas dispostas sobre a areia e ouvimos a música de Franz Schubert que sua mãe escutava durante a semana como trilha sonora que abafa o vento que vem do mar.
No que diz respeito ao cinema, os estudos deleuzianos sobre a imagem-movimento e, particularmente, sobre a imagem-tempo são uma força potencializadora para sentir a “textura”, como diria a personagem de Maxime em “Enigmas da esfinge”, de uma zona de indiscernibilidade das mulheres. O conceito de imagem-cristal, aqui usado para analisar duas sequências cercadas por espelhos, pode muito facilmente render outros debates quando em contato com essa forma repetida da mulher diante do espelho e de cineastas mulheres filmando a si próprias – de Chantal Akerman, que se filma no reflexo do vidro do metrô em “News from home” (1977) a Naomi Kawase, que se filma nas sombras e reflexos de sua casa em “Nascimento e maternidade” (2006), há uma recorrência dessa autoreferência em cineastas feministas -, assim como pode ressignificar toda uma tradição de análise fílmica produzida pela própria teoria feminista.
Bibliografia
- BAZIN, André. O que é o cinema?. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970.
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DELEUZE, Gilles. Cinema 1: a imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985.
_________. Cinema 2: a imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2005.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. Vol. 4. São Paulo: Editora 34, 2012.
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