Ficha do Proponente
Proponente
- Cláudia Cardoso Mesquita (UFMG)
Minicurrículo
- Claudia Mesquita é professora do curso de graduação e do programa de pós-graduação em Comunicação Social da UFMG, onde integra o grupo de pesquisa Poéticas da Experiência. Pesquisadora do cinema, fez mestrado e doutorado na Escola de Comunicações e Artes da USP. Publicou, com Consuelo Lins, o livro “Filmar o real – sobre o documentário brasileiro contemporâneo” (Editora Jorge Zahar), e organizou, com Maria Campaña Ramia, “El otro cine de Eduardo Coutinho” (Equador).
Ficha do Trabalho
Título
- Deslocar o mito, elaborar a história: a Oréstia africana de Pasolini
Seminário
- O comum e o cinema
Resumo
- Propomos examinar o gesto de deslocamento e atualização do mito grego de Orestes (tal como referido pela trilogia Oréstia, de Ésquilo) no filme “Apontamentos para uma Oréstia africana”, realizado por Pasolini em 1969. Nossa aposta é de que o autor se serve do mito para diagnosticar a atualidade (em sua relação com o passado histórico) da África pós-colonial. Dois aspectos terão destaque em nossa análise: 1) o procedimento da anacronia; 2) a forma narrativa do “estudo” para um filme porvir.
Resumo expandido
- Em seu estudo “A vida clara” (1993), Michel Lahud define a anacronia como um dos principais “instrumentos de análise” – e, ao mesmo tempo, “arma de combate” – da obra artística e intelectual de P.P. Pasolini (1922-1975): “Extrair do passado uma forma de vida para contrapô-la à do presente representava assim, em Pasolini, a operação que lhe garantia aquele distanciamento da atualidade indispensável à sua interpretação. Mas era também justamente o que lhe permitia recusar que as ‘coisas modernas’ passassem por naturais e conduzir em relação a elas uma crítica objetiva” (p. 52-53). Pasolini teria se servido de diferentes procedimentos “anacrônicos”, então, para “identificar, descrever e denunciar racionalmente na atualidade os signos de algum processo histórico bem diverso de uma pura e simples evolução.” (Idem)
Feita força crítica na obra do autor, a convocação do passado compreende a valorização do mito e da dimensão sagrada da vida, como ele defendeu em inúmeros ensaios e entrevistas. Ao lançar mão da mitologia grega (filmando Edipo Rei, Medeia ou “estudando” em seus apontamentos uma transposição da Oréstia em África), Pasolini não apenas “adapta” as tragédias, mas atualiza – no cinema, com o cinema – essas narrativas, compactuando com a continuação de um certo mundo mítico, que ele acreditava ameaçado em seu tempo. A essa retomada das tragédias gregas (que por sua vez retomam narrativas míticas) corresponde a grande aposta de Pasolini na África, que ele chamou num poema de sua “única alternativa” e que considerou, por algum tempo, um contraponto vivo ao genocídio neocapitalista das culturas arcaicas que se observava na Europa.
A África, este mundo “outro”, ofereceria então os melhores cenários para a transposição das narrativas míticas (formas as mais eficazes de perpetuar a consciência de um “outro mundo”, no dizer de Eliade). Se a África serve à encenação do mito, o mito serve à compreensão da África: examinaremos como Pasolini explora, na abordagem do continente, o conflito entre tempo humano e tempo mítico que a Oréstia de Ésquilo encena. Resulta desse conflito o motivo anacrônico, a relação entre passado e presente que – mais ou menos passível de síntese ou, ao contrário, contraditória e irreconciliável – está na base dos filmes Apontamentos e Medeia (o primeiro feito na África, o segundo em Marrocos e na Turquia, no dito período “mítico” da obra de Pasolini).
Propomos, então, examinar como Apontamentos para uma Oréstia africana trabalha “anacronicamente”. Se na crítica à sociedade italiana o passado comparece na chave da nostalgia, no filme realizado a partir de imagens produzidas em Uganda e na Tanzânia, o mito grego é apropriado e atualizado para exprimir a possibilidade (inteiramente distinta do que se passa na sociedade européia) de coexistência sintética e positiva de forças arcaicas e modernas na África de final dos anos 1960. O conteúdo da tragédia não oferece então um contraponto, ele é convocado por analogia, oferecendo inteligibilidade à sociedade africana contemporânea que, pesquisada como “cenário” da transposição porvir, tem, no mesmo movimento, sua atualidade diagnosticada e seu futuro, nalguma medida, idealizado.
Tal analogia se dá, no filme, pelo trabalho deliberado de montagem: a imagens documentais realizadas na África central e oriental, Pasolini sobrepõe um comentário sonoro no qual tece considerações sobre a transposição, lê trechos da Oréstia, identifica o potencial deste ou daquele africano, paisagem ou situação filmados, para desempenharem papeis, cenários, situações dramáticas em sua adaptação da tragédia. Examinando as ricas variações da relação entretecida na montagem entre as imagens documentais e a presença do texto trágico (citado, sintetizado ou indagado por Pasolini), veremos como, nos Apontamentos, o cineasta exercita sua aposta na montagem como lugar de atribuição de “consciência histórica” e de sentido às imagens do mundo.
Bibliografia
- ELIADE, Mircea. Aspectos do mito. Lisboa: Edições 70, 1989.
LAUD, Michel. A vida clara. São Paulo: Cia das Letras/Editora da Unicamp, 1993.
PASOLINI, Pier Paolo. As últimas palavras do herege. Entrevista com Jean Duflot. São Paulo: Brasiliense, 1983.
___________. Poemas (tradução Maurício Santana Dias). São Paulo: Cosac Naify, 2015.