Ficha do Proponente
Proponente
- Bernard Belisário (UFMG)
Minicurrículo
- Bernard Belisário é doutorando no PPGCOM/UFMG e pesquisa o cinema de Divino Tserewahú, o primeiro realizador indígena formado pelo projeto Vídeo nas Aldeias. Ministrou oficinas de realização audiovisual junto a diversos povos indígenas no Brasil e no Paraguai (Ayoreo). Trabalhou como diretor de documentários no Núcleo de Registro do Patrimônio Imaterial (Rede Minas/IEPHA-MG). Montou e codirigiu diversos filmes, dentre eles ‘Farewell to Savage’ (2017) do antropólogo Lucas Bessire.
Ficha do Trabalho
Título
- Modulações da voz off em ‘Wai’a: o segredo dos homens’
Seminário
- O comum e o cinema
Resumo
- Nessa comunicação pretendemos abordar os modos como as vozes off modulam o regime de legibilidade constituído pela narração no documentário ‘Wai’a: o segredo dos homens’ (1988), de Virgínia Valadão. A análise buscará então descrever as relações entre a modulação das vozes e as cenas rituais sobre as quais comentam. A questão de fundo que anima essa investigação está relacionada com a presença dos Xavante não só em campo mas no antecampo do filme.
Resumo expandido
- Wai’a: o segredo dos homens (1987) é o primeiro filme da antropóloga e indigenista Virgínia Valadão. O documentário coloca em cena um ritual do povo indígena Xavante no qual os meninos da aldeia são iniciados na vida cerimonial e no mundo espiritual das “forças não humanas” do Wai’a, conforme a explicação da própria antropóloga na voz off que percorre todo o filme, constituindo uma legibilidade aos elementos e relações das performances em cena. Além dos comentários da antropóloga, duas outras vozes vêm deslocar o lugar que a narração em terceira pessoa poderia fixar para o espectador do filme. Bartolomeu e Cornélio Xavante instauram uma interessante perspectiva não só na narração off propriamente dita como no modo mesmo como o filme constitui sentidos para as imagens do ritual. Nesta análise, pretendemos investigar como a operação mediadora dos comentários de Cornélio e Bartolomeu Xavante constitui uma legibilidade para as imagens desse filme-ritual, alterando aquela constituída pela voz off da antropóloga. Nosso objetivo é produzir uma caracterização das pequenas alterações que essa mudança de perspectiva na voz off efetua na legibilidade das cenas que compõem o filme de Virgínia Valadão.
Poderíamos dividir o filme em três movimentos ou modos da cena – modos como o filme e o ritual constituem uma cena. No primeiro deles, o filme apresenta as funções e posições em jogo na cena ritual ao longo de um dia. Essa cena ritual que toma lugar no pátio da aldeia Xavante é constituída pelos meninos iniciantes (divididos em “donos das cabaças” e “cortadores de madeira”), que sofrem sob o sol com o cansaço e com o jejum, pelos quais precisam passar para “receber o poder dos espíritos”; pelos guardas, que vigiam para que se cumpra rigorosamente o rito, “simbolizam as forças não humanas invocadas durante o Wai’a”, conforme explica a antropóloga na narração off; e pelos anciãos que tomam lugar na cena ao final do dia.
“A gente senta e os guardas, correndo. A gente, indo para sentar, descansar um pouco, e logo eles levanta[m] a gente para, de novo, levanta[m] de novo, para a gente cantar, ficar em pé. Por isso que é duro, a gente sofre e sente a sede. Com sede e fome”. Com esse comentário, Cornélio instaura uma nova perspectiva na narração off e na própria narrativa do filme. Os jovens participantes do ritual, objetos da descrição na voz da antropóloga passam a falar em primeira pessoa. Essa mudança encena uma inversão da conhecida perspectiva “científica” do cinema etnográfico clássico, que toma seus personagens como objetos de uma observação “distanciada”, acompanhada de uma fala etnocentrada a ordenar a legibilidade das imagens, articulando um “discurso muito determinado pelo ponto de vista da ciência ocidental” (Scheinfeigel, 1995 [2009]: 16). Ao ganhar forma no filme, essa inversão do ponto de vista não se efetiva de maneira “direta”, como se passássemos de um discurso “indireto” (sobre personagens) a um discurso “direto” daqueles que não tinham voz no filme científico. Pelo contrário, o comentário de Cornélio coloca em evidência a operação de tradução que essa mudança de perspectiva implica. O jovem Xavante fala em português, a língua estrangeira dos waradzu (portugueses e brasileiros), torcendo-a ligeiramente. Algo da sintaxe da língua Xavante ressoa no sotaque de Cornélio. A fala que efetua essa mudança de perspectiva sobre as imagens não o faz sem que sua condição mesma de mediação se faça notar. O regime de transparência e objetividade que o comentário de Virgínia Valadão evocava encontra-se ligeiramente alterado pela inversão de perspectiva encenada na narração off. O ponto de vista dos observados pela descrição da antropóloga figura no filme como coisa opaca, torcida pelo gesto de tradução que o constitui.
Bibliografia
- DELEUZE, Gilles. 1985 [1990]. Os componentes da imagem. In: ___________. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, p. 267-309.
MACDOUGALL, David. 1989 [1998]. The Subjective Voice in Ethnographic Film. In: ___________. Transcultural cinema. Princeton: Princeton University Press, p. 93-122.
SCHEINFEIGEL, Maxime. 1995 [2009]. Estilhaços de vozes (Robinson não diz seu verdadeiro nome). In: Devires, 6 (2), p. 12-27.
WAI’Á: O segredo dos homens. 1988, 15’. Direção e texto: Virgínia Valadão. Fotografia: Paulo César Soares. Edição: Cleiton Capellossi e Estevão Nunes Tutu. Assistente de fotografia: Paula Stefani. Locução: Roberto Gambini. Depoimentos: Bartolomeu Xavante e Cornélio Xavante.