Ficha do Proponente
Proponente
- César Geraldo Guimarães (UFMG)
Minicurrículo
- Doutor em Estudos Literários (Literatura Comparada) pela Universidade Federal de Minas Gerais (1995), com pós-doutorado pela Universidade Paris 8 (2002). Professor Titular da Universidade Federal de Minas Gerais, integrante do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da FAFICH-UFMG, pesquisador do CNPq e editor da revista Devires: Cinema e Humanidades.
Ficha do Trabalho
Título
- Entre dois, entre muitos: as cenas do comum em Avi Mograbi
Seminário
- O comum e o cinema
Resumo
- Esta apresentação caracteriza três figuras fílmicas na obra de Avi Mograbi – a indistinção, a agonística e a conversação – que demonstram como o cinema pode se empenhar na criação do comum, sabendo-o marcado pela pluralidade das existências – paradoxalmente – desprovidas de medida comum. Nesta intervenção vamos nos deter na figura da conversação, tal como configurada pela escritura de Uma vez entrei num jardim (2012).
Resumo expandido
- Se o “com” da comunidade só pode subsistir como um ser-juntos sem conjunto, como escreve Jean- Luc Nancy em La communauté afrontée, de que maneira o cinema poderia sustentar essa tarefa? O que é, afinal, fazer uma imagem com os outros? Como escreveu Jean-Louis Comolli em “Viagem documentária aos redutores de cabeça” o encontro filmado atesta que a performance cênica se deu sob a forma de um sacrifício que se consumou, que levou à consumação de uma “carga de vida”, coisa com a qual o espectador também tem de lidar, pois o real, filmado, é dado a “sentir, pensar, experimentar” (Ver e poder, p.146). Testaremos o alcance heurístico dessa noção ao manter o postulado de que o caráter político da cena fílmica coabitada reside no espaço intervalar que se abre no momento em que o visível é tomado pela co-presença de quem filma e de quem é filmado, de tal modo que a cena é movida e afetada pela exposição mútua dos que dela tomam parte, um diante do outro.
O filme Uma vez entrei em um jardim (2012), de Avi Mograbi, toma um caminho muito diferente das realizações anteriores do autor. A figura do confronto aberto (apanhado no registro direto, no território físico e simbólico dos embates, como em Vingue tudo mas deixe um dos meus olhos) cedeu lugar à conversação e ao desenho de duas atopias: o sonho – dele e do seu professor de árabe (Ali Al-Azhari), dois sonhos de regresso impossível – e a carta de amor, da judia libanesa que escreve, de Beirute, ao seu amante que emigrara para Israel. Os espaços reais do conflito, presentes nos filmes anteriores, são agora cruzados por dois outros: o jardim amoroso, lugar de encontro dos amantes, tal como na canção interpretada por Asmahan (diva libanesa das comédias musicais dos anos 1940 no Egito) e um outro jardim ¬– hoje interditado aos palestinos – do qual foram expulsos em 1948, na região de Assufryya, terra natal de Ali Al-Azhari. O filme permite que Avi Mograbi, Ali-Al-Azhari, junto com sua filha e seu irmão retornem a este lugar, provisoriamente.
De início, o filme tinha como motivo a história do bisavó e dos avós de Mograbi, de costumes árabes, que habitaram Beirute até 1947, e depois se mudaram para Tel Aviv. Esse filme se chamaria Regresso a Beirute. Em um sonho com o tio-avô que morara em Damasco, o cineasta conta que, menino, dizia preferir ficar na Síria a ir para a Palestina. Mograbi gostaria de contar esse sonho em árabe à sua namorada libanesa, da qual se vê separado em razão das divisões geopolíticas. Esse impossível regresso à Beirute dos seus avós é compensado – mas apenas em parte – pelas imagens em super-8 filmadas por um amigo libanês, que recebera algumas indicações dos prováveis lugares habitados pelos avós do cineasta nas primeiras décadas do século XX. Atravessadas por uma dupla temporalidade – antiga e atual ¬– essas imagens falam também de um exílio amoroso, aquele das cartas escritas pela judia libanesa (lidas pela atriz e cineasta Hiam Abbass). Desterrada e melancólica, a voz passeia pelo jardim de outrora, que consolava a sua alma aflita (como dizem os versos cantados por Asmahan).
A cena da conversação entre o cineasta e seu professor de árabe torna-se assim o lugar onde a impossível convivência pacífica entre israelenses e palestinos ganha uma forma móvel, deslocada ao sabor dos sutis deslocamentos que os dois interlocutores sofrem conforme a conversa prossegue (permeada pela ironia e pela aceitação das divergências). À fixidez dos lugares no espaço se opõe o seu transporte para o sonho e para a investigação em torno da memória. A cena da conversação permite a passagem entre os espaços bloqueados pelo conflito e pela segregação (como nas zonas divididas por muros e cercas, vigiadas pelas patrulhas israelenses) e inaugura um imaginário no qual as identidades e os pertencimentos se reconhecem híbridos, recuperada a sua vinculação com outra experiência histórica, a da geração de seus pais e avós, anterior à separação brutal entre árabes e palestinos.
Bibliografia
- NANCY, Jean-Luc. La communauté afrontée. Paris: Galilée, 2001.
____. La création du monde ou la mondialization. Paris: Galilée, 2002.
____. El sentido del mundo. Buenos Aires: La marca, 2003.
____. La communauté désœuvré. Paris: Christian Bourgois, 2004.
____. La communauté désavouée. Paris: Galilée, 2014
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Estética e política. São Paulo: ed. 34, 2005.
____. A estética como política. Devires: Cinema e Humanidades, v. 7, n.2, dez. 2010.
____. Aisthesis. Scènes du régime esthétique de l’art. Paris: Galilée, 2011.
SEDLMAYER, Sabrina; GUIMARÃES, César; OTTE, Georg (Org). O comum e a experiência da linguagem. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2007.