Ficha do Proponente
Proponente
- Coraci Bartman Ruiz (UNICAMP)
Minicurrículo
- Mestre em Artes pela Unicamp e doutoranda do programa de Multimeios da mesma universidade, foi bolsista da FAPESP na Iniciação Científica e no Mestrado. Participou do workshop de Realização de Documentários da EICTV, em Cuba. É diretora de diversos curtas, programas para TV e um longa-metragem, exibidos e premiados em festivais no Brasil e exterior. Como diretora de fotografia, além de seus próprios filmes assina diversos vídeos, duas séries televisivas e um longa-metragem de Renato Tapajós.
Ficha do Trabalho
Título
- O encontro basilar – identidade e afeto no documentário autobiográfico
Resumo
- Os documentários Os dias com ele (Maria Clara Escobar, 2013) e Tarachime (Naomi Kawase, 2006) partem de um mesmo ponto: a viagem de uma cineasta que, munida de uma câmera, parte sozinha para um encontro transformador (visitar o pai, no caso do primeiro, e a mãe adotiva, no caso do segundo). Atravessados por relações de afeto conflituosas, os filmes constroem identidades e articulam suas narrativas de modo a tensionar presença e ausência, gênero e geração, particular e universal.
Resumo expandido
- Em Os dias com ele e Tarachime, duas cineastas mergulham num encontro fílmico em busca da conciliação entre passado e presente. Valendo-se da câmera como agente mediador para a contrução de identidades e afetos e sem perder de vista o diálogo com temas maiores, as diretoras produzem narrativas articulando questões de gênero, geracionais, familiares e históricas.
Na emergência do documentário autiobiográfico como uma estratégia expressiva do cinema alternativo, dois traços se destacam: de lado, com o florescimento de teorias como o multiculturalismo e o feminismo, a valorização da construção identitária na elaboração de estratégias políticas; e por outro, pelo caráter flúido das identidades, a configuração destes filmes como um espaço não de representação do Eu, mas de construção deste Eu.
Em Os dias com ele a diretora se relaciona com o pai, um intelectual e ex-prisioneiro político da ditaduta militar brasileira. Seu conflito se dá por uma contradição: como reagir a um homem que ocupa ao mesmo tempo o lugar de pai negligente e de herói da resistência nacional? Por sua vez ele, mergulhado no ostracismo, vê no filme uma possibilidade de retomar seu lugar na História. E assim, mediados pela câmera, travam um embate em torno do filme a ser realizado e criando possibilidades de invenção de um pai no cinema, ou mesmo a invenção de uma cineasta com o pai (Migliorin, 2013).
Naomi Kawase, adotada por uma tia-avó, fez alguns documentários que tratam das turbulências vividas na infância e adolescência; entre eles Tarachime. A partir de duas situações limite, o nascimento e a morte, o filme (re)constrói a relação entre mãe e filha, e na narrativa cíclica se afigura a maternidade como símbolo de potência e conciliação.
Ao analisar elementos formais e a abordagem das entrevistas, percebemos que os filmes adotam estratégias opostas. Em Os dias com ele a fotografia é austera, com uso do tripé e quadros duros; a montagem é linear; e as entrevistas são frias e provocativas. Além disto, há o gesto eticamente questionável da diretora de expor o pai – seja pelo uso do ‘antes e depois’ das entrevistas, seja pelas sugestões que ele dá e ela, ao não aceitar, decide mostrar; parece evidenciar-se um distanciamento irremediável. Porém não é só o pai que ela expõe: suas teimosias, vacilos e inseguranças são mantidos na edição. E ao expor suas fragilidades e vaidades, a diretora opera uma conciliação, assim como quem diz “Estamos juntos” – é na montagem, e não na filmagem, que acontece o encontro entre eles.
Já em Tarachime a fotografia é orgânica, com a câmera na mão e efeitos de abstração pelo uso do zoom e do contra-luz; a montagem é circular; e as entrevistas são intimistas. Somada a isto, a forma como a diretora transforma a câmera em extensão de seu corpo e olhar, filmando momentos extremos da experiência humana, dá a ver um movimento de aproximação, que busca integrar as gerações da família num fluxo vital que as extrapola. Mesmo com um momento de tensão e agressividade, o filme constrói uma cumplicidade entre a diretora e sua mãe que se dá justamente na maternidade – é se tornando mãe que a diretora é capaz de fazer este filme, ultrapassando as mágoas da ausência e promovendo a conciliação.
Mergulhando em universos íntimos e tranformando seus filmes em territórios de construção de identidades e de relações, as diretoras realizam documentários autobiográficos nos quais os afetos precisam ser ressignificados para que os sujeitos se construam e se inscrevam nos campos em que se buscam – a história política de seu pais, num caso, e a noção universal do ciclo da vida entre o nascimento, a reprodução e a morte, no outro. E se os filmes são opostos em termos de elaboração estética e estratégias de relacionamento, convergem no ato conciliador de promover estes encontros basilares da integridade de cada diretora.
Bibliografia
- FOSTER, Lila. Auto-retrato no feminino. Revista Cinética.
HALL, Stuart. Da diáspora – Identidade e Mediações Culturais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2009.
MAIA, Carla. História e, também, nada – o testemunho em Os dias com ele. Site do festival Cinelatino, 2014.
MIGLIORIN, Cezar. Os dias com ele: notas para conversa em Tiradentes. Site do Festival de Tiradentes, 2013.
MULVEY, Laura. Prazer Visual e Cinema Narrativo. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.
NICHOLS, Bill. Introdução ao Documentário. Campinas/SP: Papirus, 2005.
RENOV, Michael. New Subjectivities: Documentary and Self-Representation in the Post-veritè Age. In The Subject of Documentary. Minneapolis: University Of Minnesota Press, 2004.
TEIXEIRA, Francisco Elinaldo. Eu é outro: documentário e narrativa indireta livre. In Documentário no Brasil: tradição e transformação. São Paulo: Summus, 2004.
WALDMAN, Diane, & Walker, Janet. Feminism and Documentary. Minneapolis: University Of Minnesota Press, 1999.