Ficha do Proponente
Proponente
- Fernão Pessoa Ramos (UNICAMP)
Minicurrículo
- Professor Titular do Departamento de Cinema/UNICAMP. Foi presidente da SOCINE entre 1997 e 2001. Atuou como professor convidado (2002 e 2015) na Univ Paris III /Sorbonne Nouvelle. Seu livro mais recente é A Imagem-Câmera/2012. Em 2008 lançou Mas Afinal…o que é mesmo documentário?. Escreveu também Cinema Marginal, a Representação em seu Limite. É autor e organizador de História do Cinema Brasileiro e Teoria Contemporânea do Cinema. É coordenador da coleção ‘Campo Imagético’/Papirus.
Ficha do Trabalho
Título
- ‘O HOMEM DO CADERNINHO’, OU COUTINHO PERSONAGEM DE GLAUBER EM ‘CÂNCER’
Resumo
- O que a sensibilidade de Glauber-profeta, traz para cena de Câncer, nos apresentando o personagem Eduardo Coutinho como ‘homem do caderninho’? É estranho vê-lo aqui na voz passiva, dirigido em procedimento de entrelaçamento na tomada pela personalidade. Escreve o tempo todo, sempre com seu ‘caderninho’ à mão. Coutinho figurado como aquele que pensa e escreve (em oposição ao que age, ou encena) é a extrema ironia de Glauber. Na bifurcação com o pensamento está o dilema da expressão sem mediação.
Resumo expandido
- Talvez a participação em Câncer esteja na origem do trauma coutiniano com a escritura ou, ao menos, marque sua primeira expressão manifesta. Expressão registrada pela cena de Glauber, na qual Eduardo Coutinho repete que possui um caderninho, que escreve neste caderninho e por isso é perseguido. Mas o que tem o tal ‘caderninho’? Ele não entrega para interrogador meio policial, meio marginal (Hugo Carvana). É um caderninho que ‘não tem nomes’. Coutinho se auto-define explicitamente na primeira pessoa, neste misto de delírio profético que Glauber faz dele, transformando-o em personagem de si. A expressão da qual quer fugir resume: ‘sou teórico e tenho um caderninho’, repete seguidamente. Ao caracterizar assim seu colega cineasta, a intuição glauberiana (como é próprio das intuições daqueles que profetizam) acerta na mosca. Tanto na distensão, como na ironia. Pois Coutinho efetivamente passará o resto da vida erguendo, no que mais tarde chamará de ‘dispositivo’, um caminho para a negação da maldição que Glauber pôs em suas mãos: o caderninho.
‘Intelectual comunista’ é o estigma do personagem. Além do mais é ‘teórico’ e com um ‘caderninho’. Glauber amarra assim as mãos de Coutinho, reduzindo seu campo expressivo ao extremo. Um diretor que só escreve faz roteiros, coisa que Coutinho tinha excelência na época e Glauber o sabia. É também a atividade que mais tarde o documentarista abominará. Mas a questão toma seu volume em ponto mais abaixo. Parece ser castigo de profeta e é significativo que o faro ciclope de Glauber tenha percebido que, ao fugir do ‘caderninho’, selaria seu destino e desafio futuro. Coutinho é um cineasta que, apesar da mesma geração de Glauber, irá amadurecer tardiamente podendo, a posteriori, estabelecer a ponte entre o momento de Câncer e o cinema brasileiro pós anos 2000. Cinema que elegerá Coutinho como referência no embate com a cena, nas modalidades que delineia em seus documentários e que Câncer, em certa medida, avança.
Pois o intelectual, sujeito téorico-pensador que Coutinho encarna, representa a vitória do sistema sobre a força vital. Vitória que ele passará a vida tentando apagar. É o motivo (inclusive ético) de abrir a mata cerrada das intermediações para expressão pura da potência do ‘outro’, alteridade que, para si e seu cinema, vem do campo ‘popular’. É clara a sintonia entre o desejo (que diz ser ‘neurótico’) de escapar da escrita e o personagem que vê obrigado a desempenhar. Seria neste momento que nasceria a ‘patologia’ da escritura para Coutinho, momento em que Glauber o traz para a cena de Câncer? Vamos deixar a questão em aberto, pois é composta de indagações as quais não se deve resposta. Mas a caracterização não surge gratuita. Câncer traz densidade de primeira pessoa para frente da cena. E se Coutinho já é figurado como aquele que pensa (por oposição ao que age, ou encena), será pelo fato de que o caminho da oposição se configura como dilema (ou opção). É a crosta do pensamento que vai querer romper na exposição do si próprio e na negação (‘neurótica’) de tudo que assemelhe ao intermediário, às mediações suplementares das quais escritura e caderno são modelos. Para atingir a alteridade na cena (no filme de Glauber, a respiramos sem método) é que erguerá seu dispositivo. No entanto, na própria sistematização deste (pois sem dúvida há um sistema no dispositivo coutiniano), foge da liberação e se afunda no personagem, como quem não consegue erguer a perna do pântano. Motivo de trauma, de patologia, com o qual, ainda se debaterá algum tempo antes de conseguir dar-lhe forma, na expressão estilística madura de sua carreira.
Bibliografia
- Aumont, Jacques. Les Limites de la Fiction. Paris, Bayard, 2014.
Aumont, Jacques. Le Cinéma et la Mise-en-scène. Paris, Armand Colin, 2006.
Bezerra, Cláudio. O Personagem no documentário de Eduardo Coutinho. Campinas, Papirus, 2014.
Derrida, Jacques. Gramatologia. São Paulo, Perspectiva, 1973.
Lins, Consuelo. O Documentário de Eduardo Coutinho – Televisão, Cinema e Vídeo. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2004.
Lyotard, Jean-François. Discours, Figure. Paris, Klincksieck, 1971.
Lyotard, Jean-François. La Condition Post-moderne: un rapport sur le savoir. Paris, Ed. Minuit, 1979.
Mattos, Carlos Alberto. Eduardo Coutinho – O homem que caiu na real. Portugal, Festival de Cinema Luso Brasileiro de Santa Maria da Feira, 2004.
Ohata, Milton (org). Eduardo Coutinho. São Paulo, CosacNaify, 2013.
Ramos, Fernão Pessoa. A Imagem-Câmera. Campinas, Papirus, 2012.