Ficha do Proponente
Proponente
- Junia Barreto (UnB)
Minicurrículo
- Doutora em Literatura Comparada (UFMG) e Littérature et Civilisation Françaises (Sorbonne-Nouvelle). Pós-Doutoramento no Laboratoire IHRIM – Institut d’Histoire des Représentations et des Idées dans les Modernités, Lyon 2. Profª do Depto. de Teoria Literária e Literaturas e da Pós-Graduação em Literatura, UnB. Editora da Revista XIX – artes e técnicas em transformação. Pesquisa a alteridade na literatura e artes – o cinema; e nos estudos comparados – literatura, psicanálise, filosofia e tradução
Ficha do Trabalho
Título
- A ação como desestabilizador. Crime e vertigem em Les amants criminels
Mesa
- François Ozon – Narrativas mutantes para um espectador indiscreto
Resumo
- Excitar e tirar o espectador da indiferença é a arte de François Ozon, que não o poupa em suas temáticas e tratamento; sem hesitar em incorporar, em sua estética, diferentes gêneros e artes. Mestre da desestabilização e da incitação da perda de referências no espectador, ele realiza, fazendo agir os personagens na trama. Através do filme Les amants criminels, sórdido conto de amor, interessa-nos investigar como o uso da vertigem do grotesco e a arte do crime provocam desordem e prazer.
Resumo expandido
- O apagar as luzes e o ficar no escuro do cinema implica, para François Ozon, forçosamente em excitação. Seu cinema pretende sempre instigar, provocar e tirar o espectador da indiferença. Um de seus primeiros curta-metragem, Victor (1993), exibe uma narrativa fundada no crime, ali o de um jovem que mata o pai e a mãe, tirando o espectador de seu conforto habitual. Diante da escritura fílmica construída, Ozon se posiciona como amoral (e não moral ou imoral), mas considerando-se ao lado da moral, a moral própria a cada película. Uma das relações possíveis a estabelecer entre narrativa e moral, no âmbito literário, nos remete ao domínio da fábula, por sua vez aparentada ao conto, aqui, mais precisamente, ao conto de fadas. Ozon cineasta, mas também leitor e ‘usuário – amante’ da literatura, não hesita em trazer para dentro da malha fílmica, referências, procedimentos e diálogos com o tecido literário. Não se furta, então, a criar a partir dos gêneros romance, teatro ou conto; assim como não vacila em utilizar, na narrativa fílmica, procedimentos próprios à arte dramatúrgica ou aqueles próprios a diferentes estéticas ficcionais, aqui pinceladas de grotesco, horror e fantástico.
Em seu segundo longa-metragem, Les amants criminels (1999), Ozon nos coloca mais uma vez face ao crime hediondo, praticado bestamente e bisonhamente por belos e burgueses adolescentes. Em 2001, o cineasta decidiu revisar seu filme e deu a ele uma outra narrativa – aparentando o texto fílmico à mutabilidade da representação cênica, alterando e desconstruindo a montagem da película, e, consequentemente, a estrutura do conto-fílmico, construído inicialmente de forma cronológica e linear, apresentando ordenadamente os personagens, o motivo do crime, o assassinato e suas consequências.
Na fábula de Ozon, a protagonista Alice se defronta com um coelho numa floresta, assim como a Alice do país das Maravilhas (Carroll); de forma análoga, o jovem casal de criminosos se perderá na floresta, assim como João e Maria (Grimm). No lugar da bruxa má dos contos de fada, descobrimos um ogro apaixonado pelo adolescente, que a ele vai se submeter e que com seu algoz, sadomasoquista, se realizará sexualmente. A instabilidade do desejo no filme contribui para a desordem e a desestabilização do espectador. Impactado pela crueldade com acordes de fantástico e do grotesco – em seu efeito de vertigem, o espectador descobre a impossibilidade do conto tradicional: aqui o conto é sórdido; a protagonista Alice se torna coadjuvante da estória de amor entre algoz e sua presa – os autênticos amantes criminais; o gozo entre o casal adolescente se revela impossível, realizando-se apenas em suas relações perversas com outrem; o happy-end tradicional do conto se transforma em ananké; os desejos primitivos tomam lugar de toda e qualquer regra moral; e a moral da estória a ser depreendida a partir do crime cometido não se concretiza, configurando o crime como expressão artística e exercício de prazer.
Da tradição popular do conto, passando pelas pulsões tratadas pela psicanálise, à mise en scène do grotesco, configurado enquanto vertigem particular que se apodera do espectador e o desestabiliza pela intrusão de elementos que perturbam sua percepção normal e as condições habituais do sentido, Ozon também reinventa a si mesmo como cineasta, assim como os limites de sua própria ficção. Nesse cruel conto de fadas contemporâneo, ‘as sensações interiores são traduzidas por imagens visuais’, como proposto por Bettelheim. Ozon confirma tal ideia no tecido imagético, pela ação e não pelo diálogo. O filme não é psicológico e se constitui pela ação e verbalização dos personagens nas situações vivenciadas. O cinema de Ozon seria antes de tudo ação, buscando sempre uma reação inesperada, excitando, assim, uma surpresa do espectador. Nos interessa, aqui, averiguar a desestabilização dos afetos provocada, enquanto técnica da estética fílmica ozoniana, por sua vez ancorada na mistura de gêneros e artes.
Bibliografia
- AUMONT, Jacques. Le cinéma et la mise en scène. Paris : Armand Colin, « Cinéma », 2006
______. Limites de la fiction. Considérations actuelles sur l’état du cinéma. Paris : Bayard, 2014
BETTELHEIM, Bruno. La psychanalyse des contes des fées. Trad. Théo Carlier. Paris : Robert Laffont, « Pluriel », 1976
CARROLL, Noël. A filosofia do horror ou paradoxos do coração. Trad. Roberto Ferreira. São Paulo : Papirus, 1999
LAVIE, Jean-Claude. L’amour est un crime parfait. Paris : Gallimard, « Tracés », 1997
LIMA, Maríla (org.) Mostra François Ozon. São Paulo: Luzes da Cidade, 2016
MANNA, Nuno. A tessitura do fantástico. Narrativa, saber moderno e crises do homem sério. São Paulo: Intermeios, 2014
KAYSER, Wolfgand. O Grotesco. Configuração na pintura e na literatura. 1ª ed. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2003
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. 4ª ed. Trad. Maria Clara Castelo. São Paulo: Perspectiva, 2012