Ficha do Proponente
Proponente
- César Takemoto Quitério (FFLCH)
Minicurrículo
- Doutorando pelo Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Minha pesquisa incide sobre objetos culturais do Brasil contemporâneo, mas também sobre cinema de maneira geral. Dissertação de Mestrado: ‘Cidade de Deus em perspectiva’. Escrevo para os blogs ‘chicpop’ (http://www.chicpop.com.br/) e cesarianas (http://cesarianas.wordpress.com/).
Ficha do Trabalho
Título
- Sergio Bianchi e a perversão
Resumo
- A partir de uma cena chave de ‘A causa secreta’ (1994), tentaremos uma aproximação do cinema de Sergio Bianchi, mais especificamente de algumas de suas molduras formais, a partir da categoria psicanalítica da perversão. Trata-se de tentar começar a compreender não apenas um tema pouco explorado pela crítica existente sobre o cineasta, mas a sua (em geral ignorada) pertinência e incisividade na análise de procedimentos e talvez da própria regra de composição de alguns de seus filmes.
Resumo expandido
- Estaria a perversão apenas confinada à proliferação de personagens perversos nos filmes de Bianchi? Ora, um dos traços mais salientes de seus filmes diz respeito a maneira com que sistematicamente o diretor expõe os defeitos, as obscenidades, as deformações e degradações das personagens e seus desejos. Em seus filmes, os de baixo, na escala social, não se apresentam necessariamente melhores do que os de cima, e os substituiriam, ou os abandonariam a si próprios, sem grande diferença, se possível. A hipótese que gostaria de testar é de que esse grande nivelamento por baixo característico de seus longas-metragens, e mais intensamente desde ‘Mato eles?’ (1982), não tem intenção e nem força realista, mas encenam situações tendo em vista o olhar de um Outro, no sentido de trabalhar para frustrar sistematicamente o olhar desse Outro. A maneira como Bianchi monta seus filmes, seus personagens e situações, não visa colocar o outro no lugar do Outro (HYLDGAARD, 2004). Seus personagens são objetos de manipulação e conhecimento, são instrumentos e meios para o que o diretor componha cenas que sistematicamente nivelam por baixo e degradam. Como os bumbuns do concurso, em ‘Cronicamente inviável’ (2000), ou os atores de Zé Maurício, em ‘A causa secreta’ (1994), eles são substituíveis ou simplesmente descartáveis. O mesmo contudo não pode ser dito do público que, este sim, ocupa o lugar do Outro e é chamado a assistir à exposição de degradações encenadas. As ousadias que compõem as múltiplas enunciações e situações funcionam assim como recusas da lei, tanto do bom senso estético e político do público quanto das “leis” do cinema bem feito nacional. É da repulsa, terror e do espicaçar desse Outro de que se alimentam seus filmes.
Até pelo menos ‘Quanto vale ou é por quilo?’ (2005), Bianchi trabalha sistematicamente para fazer ruir os alicerces e pilares da ideia de nação brasileira. Mas esse desmoronamento tem como alvo um público mais ou menos determinado: aquele em que se sedimentou uma ideia rigorosa de nação como uma comunidade imaginada, limitada e soberana, mas também, e aqui especialmente, como uma fraternidade horizontal (ANDERSON, 2006: 6-7). Mais precisamente a parcela desse público que tangencia e intersecciona os consumidores de cultura nacional brasileira, em especial o seu cinema. A hipótese que formularemos pode ser estruturada assim em torno da imagem do espelho distorcido, a de filmes feitos e refeitos para refletir distorcidamente os pressupostos obscenos desse público progressista e (a seus próprios olhos) esclarecido, que nos filmes aparece em geral figurado em uma classe média urbana. Esses pressupostos assumem duas formas fundamentais: a de uma voz e a de um olhar. O olhar se dá como uma espécie de reencenação bastarda do estágio do espelho lacaniano (LACAN, 1966: 93), em que o indivíduo se reconhece mas é repetidamente frustrado em suas aspirações narcísicas: a constituição de qualquer Eu estável – ou identificação não problemática, no plano do aparato cinematográfico – é solapada pela distorção e pela ventriloquia da agência narrativa, inviabilizando, no plano da representação, todas as relações interpessoais entre iguais. A voz materializa-se em grande medida como enunciação obscena, e em vários casos ela o é literalmente, pois se realiza como uma enunciação fora da cena. A voz, sendo mais elementar que o olhar em sua relação com um gozo (“jouissance”) que parece prescindir de um suporte exterior (como uma espécie de autoafeição imediata), direciona, perversamente, o insuportável do plano imagético para o insuportável das enunciações, complementando-o.
Cremos ser produtivo evitar a recusa a priori da perversão como mal absoluto ou condição irremediável, apostando em seu potencial, mesmo que limitado, de iluminar certas dinâmicas sociais brasileiras e de apontar para o seu papel necessário na constituição ou não constituição de um sujeito, ainda a especificar.
Bibliografia
- D’AUREVILLY, Barbey. Du dandysme et de George Brummel. Edição Kindle.
DOLAR, Mladen. “The object voice”. In: SALECL, Renata (ed.). Gaze and voice as love objects.
HYLDGAARD, Kirsten. “The conformity of perversion”. In: The Symptom, n. 5, 2014.
LACAN, Jacques. Écrits. Paris: Seuil, 1966.
______. Le séminaire, livre 7: L’étique de la psycanalyse. Paris: Seuil, 1986.
______. Le séminaire livre 11: Les quatre concept fondamentaux de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1973.
RIVIERE, Joan. “Womanliness as a masquerade”. The International Journal of Psychoanalysis (IJPA), v. 10, 1929.
ZIZEK, Slavoj. The Paralax View. Cambridge (MA)/ Londres: The MIT Press, 2006.