Ficha do Proponente
Proponente
- Edimara Lisboa (USP)
Minicurrículo
- Mestre e doutoranda em Letras (Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, tem desenvolvido pesquisas em torno da obra do cineasta português Manoel de Oliveira desde a iniciação científica, sob a perspectiva dos estudos de literatura e cinema.
Ficha do Trabalho
Título
- Manoel de Oliveira entre fantasmas e antimatéria
Seminário
- Cinemas em português: aproximações – relações
Resumo
- A comunicação pretende discutir reflexões teóricas que Manoel de Oliveira deixou formuladas em entrevistas e palestras por meio da análise de um de seus últimos títulos, O estranho caso de Angélica, cujo roteiro remonta à década de 1950, mas que só veio a se concretizar em texto fílmico em 2010. A defasagem temporal entre roteiro e filme não apenas resulta num interessante entrecruzar de duas épocas distintas, como problematiza a noção oliveiriana de cinema como arte da fantasmagoria. Será que o cinema captura o real? E se não o captura, qual é afinal a matéria que compõe os filmes? Haverá limites para a permanência dela? A partir da fábula curiosa de uma jovem morta que volta à vida por meio de uma câmera fotográfica analógica, esse filme de Manoel de Oliveira discute os meandros da película fílmica na era da imagem digital, sobrepondo num mesmo discurso multissemiótico questionamentos religiosos, metafísicos e científicos, de versos de Antero de Quental à hipótese da antimatéria.
Resumo expandido
- Do cinema mudo ao cinema digital, o cineasta português Manoel de Oliveira (1908-2015) presenciou grande parte da história do cinema e realizou filmes que dialogaram com essa história de forma marcadamente autoral. Apesar de não ter se dedicado propriamente à teoria e à crítica de cinema, Oliveira nunca deixou de expressar o seu pensamento sobre a arte cinematográfica. Na década de 1980, gerou grande polêmica ao afirmar que “o cinema não existe”, mas é a captação mecânica de todas as artes. Mais tarde, ele veio a suavizar esse axioma, compreendendo o cinema como a síntese fantasmagórica de todas as artes (cf. PRETO, 2008).
A noção oliveiriana do cinema como arte da fantasmagoria vem do entendimento de que, diferente do teatro ou da literatura, da pintura ou da música, o cinema não teria matéria própria, mas trabalharia com pedaços capturados de matérias preexistentes. Desse modo, o cinema captaria um duplo das outras artes, e mesmo da própria realidade, para composição de seus filmes. Cada filme seria a síntese imaterial, fantasmática (mas artisticamente trabalhada via enquadramento e montagem), de matérias que lhe são alheias. Se existe uma matéria cinematográfica, nesse sentido, ela seria a película fílmica. Mas mesmo essa tem sucumbido às facilidades do digital.
O estranho caso de Angélica, roteiro original escrito por Oliveira na década de 1950, mas que só veio a se concretizar em texto fílmico em 2010, problematiza essa noção oliveiriana de cinema. A partir da fábula curiosa de uma jovem morta que volta à vida por meio de uma câmera fotográfica analógica, uma vez que a alma dela parece ser capturada pela objetiva, esse filme de Manoel de Oliveira discute as especificidades da película em tempos de imagem digital e no entrecruzar de duas épocas distintas, meados dos anos 50 e dias atuais, sobrepondo num mesmo discurso multissemiótico questionamentos religiosos, metafísicos e científicos, de versos de Antero de Quental à hipótese da antimatéria.
Dado que a fotografia digital tornou o clique fotográfico um procedimento tão corriqueiro que o ato de fotografar em si mesmo já pouco chama a nossa atenção ou interesse, é válido lembrar que houve comunidades que não se deixaram fotografar por acreditarem que a película, ao captar a luz que emana dos seres, era também capaz de aprisionar a alma. Hoje a película fotográfica está em desuso, sobretudo depois da falência da Kodak e de a Paramount abandonar o formato 35 mm (GAUDREAULT; MARION, 2016), por isso a câmera fotográfica analógica que capta o fantasma de Angélica é uma metáfora do cinema de arte em dias de blockbusters que normatizam procedimentos de opacidade cinematográfica. Uma metáfora da permanência em tempos de constante mudanças.
Manoel de Oliveira parodia o cinema comercial multimilionário usando técnicas de computação gráfica para criar efeitos especiais à moda do cinema primitivo e acaba por demonstrar que o potencial artístico não está apenas na forma, mas em seu diálogo artístico com o conteúdo. Esse filme nos lembra que, com uma câmera analógica, o ato de fotografar se torna mais difícil e fora do comum: não basta pressionar um botão, é preciso ajustar a iluminação ambiente, selecionar manualmente a distância focal, pensar no que merece o clique para não “queimar” a pose, esperar a revelação para visualizar o resultado da foto. Nada é automático e há um grau enorme de incerteza. Se o cinema do século XXI se transformar em espaço de certeza e automatismo, haverá lugar de reflexão suficiente para desenvolvimento da aura benjaminiana, ou o cinema se transformará num fantasma dele mesmo?
Bibliografia
- ARAÚJO, N. Entrevista com Manoel de Oliveira. In: ARAÚJO, N. (org.). Manoel de Oliveira: análise estética de uma matriz cinematográfica. Lisboa: Ed. 70, 2014.
BAECQUE, A.; PARSI, J. Conversas com Manoel de Oliveira. Trad. Henrique Cunha. Porto: Campo das Letras, 1999.
BELLO, M.R.L. Narrativa literária e narrativa fílmica: o caso de Amor de perdição. 2. ed. Coimbra: FCG-FCT, 2008.
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sergio Paulo Rounet. 7. ed. 10. reimp. São Paulo: Brasiliense, 1996.
GAUDREAULT, A.; MARION, P. O fim do cinema?: um meio de comunicação em crise na era digital. Trad. Christian Pierre Kasper. Campinas: Papirus, 2016.
MACHADO, A. (org.). Manoel de Oliveira. Entrevista para Leon Cakoff. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
MATOS-CRUZ, J. Manoel de Oliveira e a montra das tentações. Lisboa: Sociedade Portuguesa de Autores; Dom Quixote, 1996.
PRETO, A. Manoel de Oliveira: o cinema inventado à letra. Porto: Fundação de Serralves; Público, 2008.