Trabalhos Aprovados 2016

Ficha do Proponente

Proponente

    André Guimarães Brasil (UFMG)

Minicurrículo

    Doutor pela ECO/UFRJ (estágio doutoral na Universidade Paris 8), André Brasil é professor do Departamento de Comunicação da UFMG, onde integra o corpo docente da Pós-Graduação. Pesquisador do CNPq, participa do Grupo de Pesquisa Poéticas da Experiência e da equipe de editores da Revista Devires – Cinema e Humanidades. Realiza o pós-doutorado junto ao Centro de Mídia, Cultura e História (New York University), dedicando-se ao estudo comparativo dos cinemas indígenas no Brasil, EUA e Canadá.

Ficha do Trabalho

Título

    Caçando capivara: com o cinema-morcego dos Tikmu’un (Maxakali)

Seminário

    O comum e o cinema

Resumo

    Na comunicação, abordo o filme Caçando capivara (2009), realizado pela comunidade tikmu’un (maxakali) da Aldeia Vila Nova, em Minas Gerais, atentando-me ao modo como traços do xamanismo tikmu’un inscrevem-se concretamente nas imagens. O filme acompanha um grupo de caçadores (cineastas-caçadores, caçadores-cineastas) que, junto aos yãmiyxop (povos-espíritos com os quais mantêm aliança), saem em busca da capivara, animal tornado raro na região, outrora rica em diversidade. Para que a quase impossibilidade da caçada se transforme em possibilidade, é preciso que a dimensão fenomenológica do cinema se altere, seja habitada, por uma dimensão cosmológica; que a paisagem desertificada seja povoada por afetos, agências e seres existentes e extintos, visíveis e invisíveis. Tomando emprestada sua dinâmica aos cantos xamânicos dos Tikmu’un, Caçando capivara sugere a possibilidade de um “cinema-morcego”, que aciona, quem sabe, uma outra modalidade de visão.

Resumo expandido

    Ainda que permita denunciar a triste situação social a que estão submetidos os Tikmu’un, Caçando capivara, filme realizado pela comunidade da Aldeia Vila Nova, em Minas Gerais, porta um outro gesto, tão ou mais contundente. Trata-se de, em meio à homogênea paisagem da monocultura, reencontrar os afetos que constituem a experiência tikmu’un: afetos que o filme busca nos cantos, nos animais, nas crianças e nos yãmiy – povos-espíritos com os quais estabelecem relação de troca, conhecimento e aliança.
    A imagem será então o lugar de encontro entre história e mito: se, por um lado, nos deparamos atônitos com a experiência de escassez e cerceamento a que este povo foi submetido, de outro, percebemos como, ao ser transfigurada por uma rica cosmologia, a terra desolada da história pode manter-se abrigo de uma multiplicidade de forças e formas de vida. Os planos-sequência que abrem caminho no denso matagal cifram esse duplo caráter do filme: a aparente monotonia da imagem do capinzal vai-se revelando e se modulando por dentro; também o som contínuo do percurso dos caçadores varia com as vozes, murmúrios, rumores, assovios e piados. E então, é todo o filme que, em sua economia de recursos, vai se tomando por essa riqueza, em uma cena variável e relacional entre homens, animais e espíritos. Ainda que o filme se apresente de modo bastante econômico, em uma espécie de realismo opaco, precário, frágil, forjado na escassez, é notável como, ao longo do percurso, a paisagem tenha se povoado de tantos e diversos seres existentes ou extintos, todos eles, em algum momento, sujeitos do ponto de vista e da enunciação: os cães, a anta, o veado, o boi, o passarinho, po’op (povo-macaco-espírito), xunin (povo-morcego-espírito), mõgmõka (povo-gavião-espírito), as mulheres, as crianças, os peixinhos, a mandioca, a capivara.
    Em Caçando capivara, as duas atividades – caçar e filmar – são assumidas pelas mesmas pessoas; Derly e Marilton são cineastas-caçadores (caçadores-cineastas) que não apenas se desdobram entre uma e outra tarefa: eles filmam como caçadores e caçam como cineastas. Por isso, caçadores, não se furtam a narrar, no interior da cena, a experiência da qual são parte; e, por isso, cineastas, estão imersos na experiência da caçada, corpos afeitos à andança no brejo ou ao rastreamento de uma capivara submersa e conhecedores dos protocolos que ligam os humanos aos animais, à paisagem e aos espíritos. Percepção e sensibilidade de caçadores serão então responsáveis, ao menos em parte, pela alteração do plano, por sua transformação em um agenciamento de forças e afecções.
    Não é à toa que os sons ganhem proeminência e, juntamente com a duração da imagem, provoquem a abertura do enquadramento para além dos limites do olhar. A imagem-escuta nos convoca a perceber uma trama sensível de ruídos, no interior da qual se misturam os diálogos breves e fragmentários dos caçadores, assim como sua risadas.
    Entoados pelos yãmiyxop na sequência de abertura, os cantos pontuam o percurso dos caçadores: não sabemos bem de onde vêm as vozes. Foram acrescentadas posteriormente às imagens? São cantos entoados (ou ouvidos) pelos caçadores em seu caminho? São extra ou intradiegéticos? Os cantos sugerem uma voz over de espécie diferente, inusitada: é como se viessem de um espaço virtual, nem totalmente interior, nem totalmente exterior, mas transversal à cena.
    Integrando-se parcialmente à experiência cosmológica do grupo, realizado por caçadores-cineastas (cineastas-caçadores), o filme cria-se, entre outros, sob o abrigo dos xunin, povo-morcego-espírito. Recusando-se a se submeter aos limites do plano, as imagens menos perspectivam o mundo do que se deixam afetar e alterar por ele. Nesse sentido, são imagens cegas, a guiar-se pelos cantos, pelos sons e suas mínimas variações, pelos eventos, muitos deles, nas bordas do não-ver. Imagens-escuta que acionam, quem sabe, outra modalidade de visão.

Bibliografia

    ROMERO, Roberto. A Errática tikmu’un_maxakali: imagens da Guerra contra o Estado. (Dissertação de Mestrado apresentada junto ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRJ, 2015).
    ROSSE, Eduardo Pires. E kõmãyxop vem visitar um livro. In: Maxakali, T; Rosse, E.P. (orgs.). Kõmãyxop – cantos xamânicos maxakali/tikmu’un. Rio de Janeiro: Museu do Índio, 2011.
    TUGNY, Rosângela. Filhos-imagens: cinema e ritual entre os Tikmu’un. In: Revista Devires – Cinema e Humanidades, Belo Horizonte, UFMG, v.11, n.2, jul./dez.2014, p.154-179.
    TUGNY, Rosângela (org.); narradores, escritores e ilustradores tikmu’un da Terra Indígena do Pradinho. Cantos e Histórias do Morcego-Espírito e do Hemex. Rio de Janeiro: Azougue Ed., 2009.
    TUGNY, Rosângela (org.); narradores, escritores e ilustradores tikmu’un da Terra Indígena de Água Boa. Cantos e Histórias do Gavião-Espírito. Rio de Janeiro: Azougue Ed., 2009.